Baseado em memórias de infância da diretora e roteirista Issis Valenzuela, “Receita de Caranguejo”, selecionado para a mostra competitiva de curtas-metragens nacionais do Festival de Gramado 2020, aposta em simbolismos e metáforas com a vida marinha para abordar o difícil processo de luto na adolescência após a morte de uma pessoa querida. Apesar de passar do ponto em suas analogias chegando a causar certo cansaço em determinados momentos, toda a construção do elo entre mãe e filha faz do filme uma obra admirável.
“Receita de Caranguejo” inicia com Lari (Thais Melo) e a mãe se preparando para a primeira viagem à casa de praia depois da morte do pai da família. O silêncio da garota impera com o seu celular sempre à mão ou assistindo documentários sobre os animais dos oceanos, enquanto a matriarca busca pequenas formas de se aproximar da filha. A identificação de Lari com os seres aquáticos, especialmente, o caranguejo, entretanto, contribui para um processo de reaproximação e entendimento dos seus sentimentos.
Como mostra este breve resumo da história, o curta não se foca em grandes ações ou eventos para fazer a história avançar. Durante aquelas pouco mais de 24 horas compiladas em 20 minutos, “Receita de Caranguejo” destaca o turbulento e silencioso processo de aceitação de uma perda dentro da mente de uma adolescente. Para tanto, Issis Valenzuela encontra dispositivos interessantes para transformar em imagem algo tão indefinido com imensa habilidade. Através de pequenas ressignificações vindas de um simples chinelo ou óculos escuros até ampliar para aspectos mais internos relativos à proteção contra a dor e a solidão, o curta mergulha na alma de Lari, ainda que o tom abstrato por vezes se estenda mais do que o necessário como na fervura dos caranguejos, uma sequência tensa, mas, que soa repetitiva dentro da dinâmica proposta.
Tamanho foco nestes simbolismos faz o curta deixar, muitas vezes, em segundo plano, aquilo que possui de mais forte: a comunicação incompleta entre mãe e filha. Percebe-se, sem dúvida, o afeto entre as duas, mas, a barreira ali presente surgida pela dificuldade em entender toda uma cadeia de sentimentos e como agir em relação a eles, provoca a sensação angustiante dentro e fora da tela. Por isso, há de se aplaudir a dupla de protagonistas vividas por Thais Melo (Lari) e, principalmente, Preta Ferreira, as quais interpretam personagens difíceis de se trabalhar por este aspecto mais contido, mas, que conseguem transbordar empatia nos breves e deliciosos diálogos.
Com um trabalho de som impecável, “Receita de Caranguejo” merece créditos pelo desafio proposto por Issis Valenzuela ao conseguir dar ao público uma visão intimista e extremamente imagética de dores tão difusas e incertas, além de ser uma obra dirigida, produzida, roteirizada e protagonizada por mulheres pretas. Uma conquista ainda longe de ser rotina no cinema brasileiro.