Roger Waters está em um cemitério militar e anda para longe da câmera. Em um corte abrupto, estamos diante de um estádio lotado de fãs e um palco que poderia ter saído direto dos delírios de Hitler é presidido por Waters enquanto guitarras choram gentilmente ao fundo.

A justaposição dá conta das duas coisas que Waters quer mostrar neste “Roger Waters – The Wall“, registro de sua turnê arrasa-quarteirão que, entre os anos de 2010 e 2013, reencenou, com tecnologia de ponta e uma estrutura que deixaria até a grande Madonna com inveja, a trama e a música de The Wall, álbum conceitual da banda inglesa Pink Floyd, o qual é largamente baseado em sua história de vida.

A primeira é, obviamente, o show, um orgasmo pirotécnico que reafirma o poder do rock de se comunicar com grandes plateias de maneira que poucos conseguem fazer hoje em dia fora dos festivais da vida. A segunda é a narrativa antibelicista que vê Rogers nos guiando em uma road trip até o memorial ao seu avô, morto na Primeira Guerra Mundial, em Anzio, na Itália.

Esta narrativa diferencia este longa de um filme de show tradicional, servindo para Waters reescrever a história de The Wall em uma saga causada pela guerra, mas pacifista, puxando totalmente para si o protagonismo da trama. Se, no álbum original, Pink – o personagem principal – era um homem destruído por suas relações pessoais e pela indústria da música, aqui ele é um homem cuja destruição foi ditada pela guerra. A obsessão por conflitos é algo que assombrou o baixista a vida inteira (The Final Cut, seu último disco com o Pink Floyd, é todo sobre isso) e aqui, aparece em força total.

Outra obsessão de Waters é a família: ele é fascinado pelas figuras do pai e do avô (ambos mortos em guerras) e várias sequências do filme contam com seus parentes interagindo com ele. Curiosamente, sua mãe é pouquíssimo mencionada e nenhuma esposa é nomeada (o música acaba de se casar pela quarta vez) – a maior presença feminina no filme é a “mãe” castradora ficcional do personagem Pink, a qual Waters já declarou no passado não ter sido baseada em sua mãe.

A empreitada toda tem um quê de sessão de terapia, com o baixista reencenando todos os mitos freudianos clássicos: pai, mãe, a ideia do lar (simbolizada por uma casa que reaparece constantemente durante a projeção), todos aparecem claramente moldando Waters e guiando o que viria a ser a história de The Wall. A fotografia clean e sisuda de Brett Thornbull tem a pegada narrativa dos documentários modernos e o tom sério da produção (que conta com uma introdução de Liam Neeson) reforça a seriedade com que o roqueiro trata estes temas.

O show em si ilustra a personalidade tirânica de Waters (que ele exerceu na banda tanto quanto pôde), reconfigurando-o como um tirano totalitarista e astro do rock enclausurado em sua “parede”, uma enorme estrutura de LED que separa a banda do público. Toda a atenção está nele, diferenciando substancialmente esta versão do show da realizada (e gravada) em um evento em Berlim em 1990, em que o baixista chamou diversos artistas (como Scorpions, Sinéad O’Connor e Cyndi Lauper) para cantar e reencenar o disco. O narcisismo chega a tanto que, durante a canção “Mother”, ele faz efetivamente um dueto com uma gravação dele mesmo.

No entanto, com ajuda de uma excelente banda de apoio, Waters segura muito bem o espetáculo e torna impossível não se emocionar com ápices emocionais do disco, como “Run Like Hell” e “Comfortably Numb” (esta última, potencialmente uma das melhores canções de rock já escritas). Com uma apresentação impecável, filmagem competente e sequências surreais para mexer com a nossa imaginação (algumas cenas homenageiam “O Iluminado” e “Roma, Cidade Aberta” diretamente), “Roger Waters – The Wall” vale o ingresso de quem não conhece Pink Floyd e exige o ingresso de quem conhece.