Já virou certo clichê entre a parcela ocidental da crítica cinematográfica a comparação entre “RRR” e os blockbusters hollywoodianos. Hollywood, dizem os críticos, deveria voltar sua atenção às terras ao leste do globo, porque “RRR” os deixa no chinelo em termos de espetáculo. Ora, até mesmo este que vos fala tem resmungado sobre a mesmice hollywoodiana já há alguns textos.

O interessante nessa história toda é que tanto Hollywood quanto as diferentes indústrias cinematográficas indianas partem de uma mesma mentalidade. (E não, a Índia não é só “Bollywood”, que representa apenas a parcela em hindi da sua produção; “RRR”, por exemplo, é falado em télugo, apesar da versão disponível na Netflix ser dublada em hindi.) A mentalidade é: fazer filmes que possam ter apelo para diferentes faixas demográficas.

Um filme do MCU, por exemplo, precisa ter algo para as crianças, para os adultos, para os homens, para as mulheres, para os LGBTQIA+ e assim por diante. (Sabemos que para o último grupo se trata sempre de alguma menção fuleira sobre a sexualidade de algum personagem terciário, slogans ditos da boca para fora de forma cínica). Da mesma forma, o cinema indiano também quer agradar a todos – como S. S. Rajamouli, diretor de “RRR”, prontamente afirma.

A diferença é que, se em Hollywood, o resultado dessa empreitada é frequentemente o menor denominador comum cinematográfico – um amontoado homogêneo de referências e personagens pré-existentes –, em um filme como “RRR” há, ao contrário, uma amálgama heterogênea de tons e gêneros. Assim, enquanto um “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” da vida se mostra mais um filme de comitê que qualquer outra coisa, “RRR”, por sua vez, quer te entreter a qualquer custo, preservando certa autonomia entre suas diversas vertentes. Você gosta de musicais? Aqui você tem um. Bromance? Idem. Comédia romântica? Drama histórico? Ação super-heróica? É só chegar.

É um certo malabarismo, portanto, o que Rajamouli executa no desenvolvimento de seu filme. Com 185 minutos de duração, a sensação que se tem assistindo ao longa é a de ser esmagado no sofá pelo peso do seu espetáculo – o que, de minha parte, é algo positivo. A cola que une todos esses impulsos díspares é, eu diria, a sensibilidade particular do modo de ser indiano – que, em cinema, se aproxima mais de uma lógica da mostração que da narração.

Lógica exibicionista

Explico. Em geral, identificamos em Hollywood uma certa lógica fílmica que depende, primeiramente, da narração: cada cena deve contribuir para o andamento da narrativa, e o que não cumpre tal propósito na trama é visto como gordura, devendo ser, portanto, eliminado. São filmes que, estilisticamente, tendem a ser mais contidos no geral, já que seu princípio-mor é mostrar uma história, e não se mostrar (claro que há inúmeras exceções, mas sempre que um diretor com forte senso de estilo aparece, é taxado de “excessivo” – Sam Raimi, De Palma, Scorsese etc).

O contrário ocorre na “lógica da mostração”, exibicionista por natureza. Aqui, o prazer não está (apenas) na eficiência narrativa e na resolução dramática; é preciso, antes, deleitar o espectador com o que se dá à vista – em detrimento da progressão narrativa, se necessário.

Assim, em “RRR”, Rajamouli frequentemente pausa o andamento da trama para prolongar-se sobre alguma nova vista espetacular – e tome slow motion e dollys circulares. Seu uso de CGI é, nesse sentido, perfeito, complementando uma certa fluidez espacial que está mais preocupada em deslumbrar do que se ater às nossas monótonas leis da Física.

Rebelião e amizade

Tudo isso, e ainda nem dissemos do que se trata o filme. Passado na década de 1920, em uma Índia ainda colônia do Império Britânico, “RRR” conta a história da improvável amizade entre um oficial indiano servindo aos britânicos, Raju (Ram Charan), e o camponês revolucionário Bheem (N. T. Rama Rao Jr.).

Raju e Bheem, diga-se de passagem, são nomes de figuras reais na história revolucionária indiana. “RRR”, contudo, é um filme e não uma aula de história; boa parte do que o filme mostra em se tratando de seus heróis – incluindo, pasmem, sua força sobre-humana e habilidade musical – é fictício, a começar pelo fato de que, na vida real, Raju e Bheem nunca sequer se encontraram.

O título, é verdade, não nos diz muito: “Rise, Roar, Revolt” em inglês, e “Revolta, Rebelião, Revolução” em terras tupiniquins. Mas, originalmente – e esse é o pulo do gato –, as iniciais representam os nomes de seus astros: Ram Charan como o temível militar Raju, Rama Nao como o afável Bheem e, finalmente, o próprio diretor Rajamouli. O diretor, que já trazia no seu histórico a maior bilheteria da história da Índia com seu “Baahubali 2”, desbancou a si mesmo com “RRR”, que tomou o título para si.

Línguas diferentes

Esse aspecto é apenas um dos muitos que se “perdem na tradução”, por assim dizer. Mentes mais cultas que a minha provavelmente reconhecerão as inúmeras referências a personalidades históricas e divindades indianas que, mudas para os incautos, sem dúvida fazem o filme ressoar ainda mais forte com seu público-alvo.

Por isso mesmo, este é um daqueles filmes que deveriam ser vistos, preferencialmente, em um cinema grande e lotado. No êxtase da experiência cinematográfica, em meio aos urros e gritos de uma plateia em polvorosa, é muito mais fácil se perder de vez no apelo sensorial de um filme como este.

Mesmo que o impacto seja mitigado pela placidez da sala de estar, “RRR” segue sendo, em termos de espetáculo, imperdível.

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