Não deixa de ser interessante que neste início da sua carreira como diretor, Pedro Serrano tenha estabelecido um forte laço afetivo com o icônico sambista paulista, Adoniram Barbosa. Afinal, o sambista deixou a sua marca no samba nacional dos anos 1950 e 1960 ao compor canções cujas letras retratavam a realidade nua e crua da cidade de São Paulo, caracterizada neste período por uma metrópole de fortes contrastes sociais. 

Por meio deste fascínio pela figura de Barbosa, Serrano fez o curta “Dá Licença de Contar” (que lhe rendeu o prêmio de melhor curta pela crítica no festival de Gramado), depois o documentário “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato” e, agora, estreia em longa-metragem de ficção com “Saudosa Maloca”, título retirado de uma das mais celebres músicas do compositor. 

Utilizando o seu curta de 2015 como fonte de inspiração, o filme revisita as músicas de Adoniram, colocando-o dentro das suas canções e dividindo a narrativa em dois tempos: uma no presente, aproximadamente nos anos 1980 com o artista vivido pelo Titã Paulo Miklos contando a sua trajetória de vida a um jovem garçom (Sidney Santiago) e a outra no passado, nos anos 50, com ele tentando sobreviver da música no tradicional bairro do Bixiga, ao lado dos amigos Mato Grosso (Gero Camilo) e Joca (Gustavo Machado), numa São Paulo em pura ebulição com as transformações sociais econômicas vigentes. 

Na contramão das cinebiografias

“Saudosa Maloca” se destaca por nadar na contramão das cinebiografias. Serrano foca menos na tradicional trajetória de vida do artista e opta por estudá-lo a partir das letras de suas músicas. Esta liberdade de fugir das regras batidas do gênero permite ao trabalho ganhar uma dinâmica mais intimista, centrada nos personagens e nas situações cotidianas que eles atravessam para garantir o sustento na grande São Paulo. 

Nota-se o quanto o cineasta nutre um ponto de vista apaixonado pelo músico, elemento que facilita explorar os “causos sambistas” que envolvem Adoniram e sua relação íntima com a cidade e parceiros, sendo assim, pouco importa se Joca e Mato Grosso realmente existiram, ou se tudo não passou da imaginação fértil de um genial cantor que apenas utilizou inspirações reais para criar personagens mágicos nas letras das suas canções. 

Ao deixar de lado as amarras de fidelidade da cinebiografia pessoal, “Saudosa Maloca” abraça os momentos mais conhecidos e importantes de Barbosa, suas relações com os personagens que vivem no bairro do Bixiga e o quanto isso contribuíram para suas músicas. Percebe-se que Serrano acredita que é por meio dessas histórias é que o quebra-cabeças de quem é Adoniram Barbosa pode ser montado pelo próprio público na sua mente, sem precisa relatar as origens, a carreira no rádio e as influências musicais. 

É nítido também que o Serano ressalta a importância da poética de resiliência de seus sambas e que ia na contramão da lógica industrial da São Paulo da década de 50, para comunicar a sociedade de massas, o resgate da memória e linguagem popular da classe operária e os desafios cotidianos de se viver em uma cidade industrializada. 

LEVEZA POUCO APROFUNDADA

É gostoso de ver a abordagem de Serrano de encontrar um meio termo do chamado filme sobre música (como o recente “Eduardo e Mônica”) com a biografia clássica (semelhante a “Nosso Sonho”). Em “Saudosa Maloca”, a canção serve de base para narrativa ser desenvolvida em uma crônica social singela, que utiliza os espaços e cenários para criar momentos nostálgicos ao mostrar uma São Paulo da garoa frequente, dos jogos de dominó e rodas de samba na mesa de bar, do centro da cidade como foco de todo movimento social e da formação dos bairros pela imigração italiana com uma cultura e linguajar peculiares. 

Isso é observado bem na dinâmica da obra, nos diálogos e nas situações que os personagens vivenciam na cidade, no bairro e na maloca e que Adoniram se apropriava, cultivava e propagava muito bem nas letras de suas canções, carregadas pelas gírias paulistanas. As situações que o trio protagonista enfrenta ao lado das pessoas que cruzam o seu caminho rendem momentos de humor nonsense clássico que vão dos filmes Mazzaropi aos Trapalhões, sendo o personagem de Mato Grosso uma mistura interessante de Chaplin com Didi Mocó. 

As cenas de samba no bar são gostosas de se acompanhar até porque a câmera de Serrano as filma com uma imersão tão real a partir de ângulos caprichados e pouco usuais que ajuda a contrabalancear a narrativa que, em grande parte, se aproxima muito mais do tom fantasioso de fábula. 

Se de um lado esta crônica social faça interessantes reflexões a partir de um ponto de vista melancólico – transformando “Saudosa Maloca” em uma comédia triste nas entrelinhas – sobre uma São Paulo que não existe mais e trace paralelos pessimistas com nossa atualidade a partir da maneira que o processo de gentrificação social esmagou a identidade boêmia das grandes metrópoles do país, pelo outro dá pra sentir que o filme, apesar de todos os seus esforços, nem sempre consegue se apresentar muito atraente no campo narrativo devido suas caricaturas nos momentos mais dramáticos. 

A própria crítica social é simplificada em demasia pelo contexto fantástico da obra e nem sempre a figura real de Adoniram se ajusta a do mito, a do mestre do samba, para dar força dramática ou crítica aos momentos mais emblemáticos da obra como na passagem de Iracema (Leilah Moreno), que ganhou uma triste canção com seu nome pelo artista, ou toda a relação do jovem garçom com o músico, responsável em construir os elementos narrativos mais sociais ao trabalho, mas que também fica superficial pela linguagem cinematográfica ser muito leve e inocente para tratar de temas mais sérios. 

CONTO DE FADAS URBANO

Por fim, difícil não falar do elenco. Miklos é um ator que transita entre os tipos mais complexos desde que se destacou em “O Invasor”, entregando performances verdadeiras nos seus personagens. Quem imaginaria que uma figura do rock personificaria com eficácia um dos ícones do samba? É claro que ao seu lado merecem destaque Gero Camilo e Gustavo Machado que estão ótimos e divertem o público com suas trapalhadas diárias. 

No geral, “Saudosa Maloca” mostra Pedro Serrano em início da sua carreira, seguindo um caminho autêntico nesta sua trajetória sobre Adoniram. A reverência sobre o artista mostra a paixão do seu realizador pela realidade da boemia paulistana, traduzindo suas histórias e seus causos por meio de um conto de fadas urbano, que além de emocionar, é o puro suco do que é ser o brasileiro raiz. Como Adoniram pontuava nas suas letras: apesar das perdas sofridas, a vida tem seus lampejos de esperança e a beleza dela está nas simplicidades genuínas que o cotidiano proporciona, entre elas a música, a amizade e o amor. Com certeza, alguma vez na sua vida, você já escutou um Trem das Onze passando nela.

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