“Ruptura” chega até nós causando um bafafá que a compara a “Black Mirror” e “The Office”, mas essas não são as únicas referências que permeiam o trabalho. A temporada, dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle, passa boa parte da primeira metade à procura de um tom próprio.

Stiller, é verdade, tem um bom olho composicional; “O Pentelho” (1996), estrelando Jim Carrey, pode não ser um filme muito bom ou memorável, mas não me espantaria que ele fosse chamado de uma das comédias mais visualmente distintas dos últimos 30 anos. Mas “Ruptura” precisa de um pouco mais que um visual bem elaborado para se encontrar – o que, por fim, acontece.

O mundo da série é terrivelmente frio – tanto pela nevasca que toma conta das ruas, como pelos rituais burocráticos e cerimônias cotidianas do ambiente de trabalho. Nesse mundo, um procedimento criado pela maléfica corporação Lumon leva a separação entre trabalho e vida pessoal às últimas consequências: através de um implante no cérebro, os trabalhadores, quando no serviço, não têm nenhuma memória de suas vidas particulares – condição em que são chamados de innies; em contrapartida, ao saírem do trabalho, deixam de ter qualquer lembrança das últimas oito horas – passando à alcunha de outies.

Innie e outie são duas faces, alheias entre si, de uma mesma consciência cindida; mas o que acontece na prática é que os innies, por só reterem na memória as horas passadas no escritório, vivenciam seus dias sob a angústia perpétua do cativeiro.

Destilando referências

É um bom conceito, capaz de sustentar o piloto muitíssimo bem. Nele, começamos a ser apresentados a esse estranho mundo com corredores homogêneos, estacionamentos simétricos e vizinhanças que parecem maquetes de mostruário.

Mas a coisa logo amorna e, pelos próximos dois ou três episódios, “Ruptura” ameaça ficar no mais do mesmo. Você se pergunta o que ela tem para te mostrar além daqueles frames opressivos à la “Mr. Robot”, com os personagens no canto do quadro enquanto destrincham segredos empresariais; ou do visual hi-tech-corporativo-retrô, que também deu as caras recentemente em Lóki (qual é a dessas distopias hipsters?); ou ainda, da vibe Grande Irmão fofinho que emana do falecido fundador da Lumon, Kier Eagan.

Esse caldo de referências começa a parecer bem ralo enquanto a série vai empilhando mistérios, sem saber (aparentemente…) que direção tomar. Era nesse ponto que começava a se delinear a imagem amarga de, aí sim, um pastiche de “Black Mirror” (argh!).

Que “Ruptura” não descambe por esse caminho se deve principalmente aos rostos singulares do elenco: Adam Scott como Mark S., nosso protagonista, tem pequenos olhos redondos destacados por uma cara lânguida e uma boca minúscula, enquanto Patricia Arquette como a temível chefe de Mark, Harmony Cobel, transforma os olhos azuis em duas pedras de gelo; e Christopher Walken (!), simplesmente um dos atores mais singulares que já existiu, é uma injeção de vitalidade desde seu primeiro momento em cena.

Mas eu me vi fascinado mesmo foi por Dichen Lachman, atriz que interpreta Ms. Casey – algo como uma terapeuta do trabalho: a face dela, espécie de máscara grega marcada por maçãs do rosto pontudas e olhos oblongos, tem o formato de uma gota d’água e a agudeza de uma lâmina de vidro.

Uma galeria de rostos tão distintos é absolutamente necessária neste mundo de lâmpadas fluorescentes e salas climatizadas: como todos os personagens precisam, em uma medida ou outra, viver sob certa fachada de profissionalismo no ambiente de trabalho, são as micro modulações em suas faces, registradas por uma câmera ora em close, ora abertíssima, que saltam aos olhos – e às vezes, através de uma truncagem que só posso supor ser digital, os rostos chegam a ser levemente distorcidos, enquanto os personagens realizam a viagem de elevador que os levam do “mundo real” ao trabalho e vice-versa. Isso só não vale para a vilã de Patricia Arquette, que está se divertindo horrores ao oscilar entre uma frieza de pedra e explosões bombásticas.

Equilíbrio próprio

Enquanto ganha contornos cada vez mais absurdos, “Ruptura” finalmente respira. Uma sub-plot envolvendo a rixa entre dois departamentos – rixa essa que, baseada em lendas há muito contadas, ninguém sabe explicar – é um ponto alto dessa temporada. Christopher Walken e John Turturro (!) brilham nesse non-sense por vezes quase montypythoneano; que a relação dos dois seja imbuída de um sentimento genuíno e tocante é atestado (como se fosse preciso) da grandeza de ambos.

Essas tangentes coloridas são bolsões de ar nos escritórios estéreis da série; é aí que a trama encontra o equilíbrio perfeito para retratar o purgatório cotidiano do mundo corporativo. O fato desse pesadelo, tão facilmente reconhecível, ser pautado pela insana escolha, renovada diariamente, de nos levantarmos da cama para mais um dia esvaziado de sentido, é a verdade que transforma a série em tragédia.

No fim das contas, parece apropriado que eu tenha assistido de uma só vez a essa produção da Apple TV+ – a Apple que, até onde eu sei, poderia perfeitamente ser uma Lumon da vida real. Talvez, a melhor forma de consumir esse sci-fi sobre nossas vidas infelizes em trabalhos desumanos seja numa tacada só, maratonando-o.

Daí o estranho “conforto” de “Ruptura”, do qual fala a crítica publicada pela Vanity Fair: imersos na lógica do consumo (e do trabalho) neurótico e perene, e buscando alguma forma de alívio momentâneo antes de mais um round de labuta, podemos nos esparramar na cama com o celular colado ao rosto, alheios, como os funcionários da Lumon, ao tempo e à vida.

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