O que Luca Guadagnino (Me Chame pelo Seu Nome) faz com esta nova versão de Suspiria, o terror cult lançado por Dario Argento em 1977, pode ser comparado ao que Denis Villeneuve fez com o Blade Runner (1982) de Ridley Scott, em Blade Runner 2049 (2017), ou Danny Boyle com o seu próprio Trainspotting: Sem Limites (1996), em T2 Trainspotting (2017): pegar algo que já era bom, e reimaginá-lo com tanta perícia e inspiração que o novo produto consegue não só ombrear com a fonte, mas também – quem diria! – até superá-la.

Pois este Suspiria não só soube apreender e recriar todas as virtudes do original de Argento – a atmosfera, o uso fascinante e cheio de simbolismo das cores, a investigação de seus temas de maternidade e relações de poder entre mulheres –, como adiciona novos ingredientes formidáveis ao caldo: a música inquietante de Thom Yorke, vocalista do grupo inglês Radiohead; um persistente subtexto político, ligando as tramoias ocorridas na academia de dança Tanz aos eventos do chamado “Outono Alemão” de 1977, quando a organização extremista Facção do Exército Vermelho semearia o caos no país; e a erupção vulcânica que é a performance de Tilda Swinton (de Precisamos Falar sobre Kevin e Doutor Estranho), em nada menos do que três papéis – tente descobrir quais são os outros dois.

Diferentemente daqueles dois filmes, porém, a obra de Guadagnino não é uma continuação direta do antecessor: é uma recriação de fato, ampliando e elaborando suas premissas iniciais a tal ponto que os dois filmes estão só superficialmente ligados – um animal diferente, mais vistoso (claro – a nova versão tem um orçamento muito maior e um elenco bem mais estrelado), perturbador e intrigante. Que bom, aliás, que Guadagnino levou sua homenagem à obra de Argento por esse caminho.

1977: Susie Bannon (Dakota Johnson, que vem descolando lindamente a sua carreira da série Cinquenta Tons de Cinza) é uma dançarina americana recém-chegada a Berlim, em pleno Outono, para se candidatar a uma vaga na Tanz. Uma completa desconhecida, mas uma sensação imediata: até a líder da companhia, a misteriosa Madame Blanc (Swinton), sente um comichão à sua presença. A entrada de Bannon em cena também coincide com um evento misterioso: o desaparecimento de Patricia (Chloë Grace Moretz), que até há pouco era a estrela em ascensão da Tanz. Mais situações estranhas acontecem – uma outra dançarina desaparece; certo dia, por uma fresta, veem-se dois homens em estado de transe, enquanto duas das simpáticas senhoras que gerenciam o estabelecimento brincam com eles (ambos nus), usando coisas como o que parece ser um gancho gigante de pesca –, mas Susie não se abala. Pelo contrário: ela deseja ardentemente estar ali. Só Sara (Mia Goth, de Ninfomaníaca), a colega de dança que mais se afeiçoa a Susie, parece ficar incomodada com o estado de coisas, algo que a colocará diretamente no caminho das sinistras e glamourosas donas da festa.

ECOS DE FASSBINDER E SIMPLESMENTE TILDA

Aliás, como o Suspiria de 2019 é um show de glamour: das imponentes atrizes que recheiam o elenco (as veteranas europeias Renée Soutendijk, de Sem Controle [1980], Angela Winkler, de O Tambor [1979], e a fassbinderiana Ingrid Caven) à estética elegante, que recria à perfeição o clima de decadência e paranoia, mas também de efervescência e experimentação, da Berlim do Baader-Meinhof, de David Bowie e do Novo Cinema Alemão, Suspiria é uma festa para os olhos.

Por sinal, é Rainer Werner Fassbinder, bem mais do que Argento, quem parece ser a principal referência para esse trabalho: a fotografia e os cenários do novo filme remetem o tempo todo a obras contemporâneas do mestre alemão, como O Medo Devora a Alma (1974), O Casamento de Maria Braun (1979) e Roleta Chinesa (1975). Essa chave também explica o artificialismo e a estetização assumidos da narrativa, que é tão oposta às sutilezas e ao naturalismo de seu trabalho anterior (Me Chame…) quanto Guadagnino poderia querer.

E temos Tilda Swinton. Como começar a descrever o deleite que é ver essa mulher?

O trabalho de voz (e idioma), a postura corporal, o magnetismo e a autoridade absolutos que emanam da sua mera presença em cena – para um filme todo centrado em mulheres badasses, Guadagnino teve a sorte (ou o sortilégio) de poder ancorar seu filme na mais poderosa de todas. Todas as atrizes, aliás, estão excelentes nos papéis (tente descobrir, em meio a tanta opulência, a participação de Jessica Harper, a estrela do Suspiria original, ao longo da projeção), assim como o estreante Lutz Ebersdorf, que vive Josef Klemperer, o psiquiatra que é atraído pelo estranho encanto da academia de Mme. Blanc. 

VIVA O TERROR

Um ponto que tem dividido bastante a crítica, além da opção de Guadagnino pela estilização, é o background político do novo filme, que tem soado gratuito e/ou incongruente a muitos. A meu ver, além de colocar o enredo original num quadro mais amplo, que espelha a constante inquietação vivida no ambiente claustrofóbico da academia, as referências à FEV, somadas ao pequeno enredo envolvendo o dr. Klemperer e sua experiência na 2ª Guerra Mundial, enriquecem a tapeçaria de Guadagnino ao acrescentar comentários sobre a culpa coletiva da sociedade alemã no pós-guerra, assim como os desvãos dessa monstruosidade chamada patriarcado.

No saldo, um filme de terror com muito a oferecer além dos gritos e mortes sanguinolentas de hábito – não que haja nada de errado com isso. O fato indisputado é que Suspiria é, desde já, um dos melhores filmes de terror a surgir desde o clássico de Argento – e, junto com o Nós de Jordan Peele, a outra joia a agraciar o gênero que é talvez o mais intrigante do cinema de entretenimento em 2019.