Depois de reler o faroeste em “Vingança e Castigo“, Jeymes Samuel agora traz sua visão black power para o Novo Testamento. “The Book of Clarence”, novo projeto do diretor britânico que teve sua estreia mundial no Festival de Londres deste ano, dá um toque moderno ao tradicional gênero do épico bíblico. É ousado, ácido e muito divertido – ainda que a mudança tonal em seu terceiro ato destoe um pouco do todo. 
 
O Clarence do título (Lakeith Stanfield, de “Judas e o Messias Negro“) é um malandro endividado tentando se dar bem em Jerusalém na época de Cristo. Ao ver as doações recebidas pelo séquito de Jesus, ele também se declara um enviado de Deus para ficar rico e ter seus dias de glória. Com o sucesso, não demora muito para ele entrar na mira não só de seu credor, mas também das autoridades romanas. 
 
Samuels tem clara reverência pelo gênero que adotou aqui, com a perseguição de carruagens que abre o filme não devendo nada a obras como “Ben-Hur”. No entanto, de maneira geral, o diretor roda “The Book of Clarence como um videoclipe, emprestando a linguagem visual do dance e do hip-hop contemporâneo para pintar Jerusalém como uma cidade boêmia e cheia de vida, mas com muita desigualdade. 
 
Essa decisão tira da produção a sobriedade associada aos épicos bíblicos e aproxima os personagens dos percalços dos dias de hoje. Na superfície, a trama é o atemporal conto do pobretão que sobrevive na garra e quer transcender sua origem humilde, ganhando a garota dos sonhos e provando seu valor para seus pares no processo. 

LÁBIA E GINGA IRRESISTÍVEIS

O que torna a empreitada de Clarence engraçada são os tombos que sua humanidade o faz levar pelo caminho – e é triunfo de Stanfield criar um personagem tão cativante. O ator é hábil em mostrar a vulnerabilidade do sujeito esperto que cresceu na rua e dotado de uma moralidade um tanto duvidosa. O que poderia ser um arquétipo, nas suas mãos, é um homem falho e crível que vai além das piadas.

Não que falte motivo para riso: “The Book of Clarence” tem diversas sequências que pedem um replay quase imediato, como a interação entre Clarence e os apóstolos, sua conversa com Maria, mãe de Jesus (Alfre Woodard), mãe de Jesus, ou a primeira aparição de Jesus no filme – uma montagem que pinta o líder cristão como uma estrela local, chamando a atenção por onde passa.

Enquanto comédia bíblica, o maior ponto de referência do roteiro, escrito pelo diretor, é “A Vida de Brian”, que dava o dedo do meio para o fanatismo cego dos seguidores de Cristo. No entanto, a intenção de Samuels não é criticar a prática religiosa, mas contar a história de um ateu que encontra, na busca por glória, encontra sua crença.

Se isso parece uma jornada interior bem séria, é porque é mesmo – e conforme Clarence começa a encarar as consequências de suas escolhas, o longa abandona o humor e adota um tom estranhamente solene em seu desfecho. Aos poucos, a produção irreverente e debochada se torna tão gospel quanto os clássicos épicos que satiriza.

A mudança, apesar de incômoda, não tira completamente o valor do que veio antes. Samuels se diverte com as possibilidades de suas provocações e seu protagonista serve como lembrete de que todos podem ter a chance de rever conceitos e buscar a redenção. Clarence pode não ser o filho de Deus, mas tem lábia e ginga mais do que suficientes para converter o público.