• “The Dirt – Confissões do Motley Crue” (2019). Direção: Jeff Tremaine. Elenco: Iwan Rheon, Daniel Webber, Douglas Booth, Machine Gun Kelly.

O cinema sempre viveu de ciclos que vão e vem. Houve uma época na década de 2000 que a tendência era adaptar as biografias de cantores. O sucesso comercial de Bohemiah Rhapsodynão apenas reativou este ciclo como abriu a porteira para o lançamento de novas biografias. A Netflix que não tem nada de boba e sabe que o público está ávido em “consumir” uma nova obra voltada para alguma celebridade da música, lançou, na semana passada, The Dirt – Confissões do Motley Crue, autobiografia de uma das bandas mais glamorosas do Hard Rock americano e que, de certa maneira, elevou a maneira de ser rockstar na concepção mais clássica possível ao misturar couros, roupas futuristas e maquiagens com melodia e som pesado.

Centrado na origem do Motley Crue e de seus quatros integrantes na Los Angeles da década de 80, o filme acompanha a trajetória ascendente da banda e suas principais estripulias ao longo das décadas. The Dirt é a personificação que o clássico clichê Sexo, drogas e rock ‘n roll! pode funcionar na sua essência mais pura. Temos uma comédia cheia de gatilhos inconsequentes – há generosas cenas de nudez, palavrões, sexo e drogas – apresentados numa velocidade absurda que exibe certo fascínio do filme em mostrar o quanto os excessos de quatro seres humanos podem proporcionar o êxtase e a decadência nas suas vidas. Neste sentido, o filme resgata o espírito das Sessões da Tarde para maiores como o politicamente incorreto de Quanto Mais Idiota Melhor e Detroit Rock City com as pitadas da sacanagem de Porky´s e o besteirol de Jackass. Este último, por sinal, tem um componente ligado a produção da Netflix: o diretor Jeff Tremaine é co-criador da série da MTV e que faz sua estreia em longa-metragem em The Dirt.

Uma narrativa pós-moderna

Rockstars como Van Halen e Ozzy Osbourne responsáveis por enormes surubas e loucuras no mundo do rock nunca esconderam nas suas entrevistas que suas “porraloquices” não passavam de brincadeiras do jardim de infância perto das estripulias feitas pelo Motley Crue. Logo, Tremaine parecer ser o cara mais capacitado para transpor em imagens, as maluquices da banda. Vindo das sandices bizarras da série Jackass, o diretor encontra-se à vontade para reproduzir todo o extremismo de como o Motley conduziu sua carreira – mais interessada no sexo e drogas do que no rock’n roll -, apresentando, sem dificuldade, o politicamente incorreto na primeira hora do filme ao fazer uma apologia à vida inconsequente dos seus integrantes musicais.

Tremaine no campo audiovisual dá a energia necessária para The Dirt: sua estética de videoclipe e sua narrativa pós-moderna funcionam pelas diferentes abordagens como o diretor operacionaliza a sua câmera. A principal delas é quando ele resolve contar sua história a partir do ponto de vista dos quatro integrantes. A trama pula de um para outro integrante, revezando os quatro como narradores do longa. Isso estabelece uma ótima dinâmica entre o filme com o público, já que os personagens – inclusive os coadjuvantes – quebram a quarta parede cinematográfica, falam com o espectador e olham ironicamente para a câmera para nós tornar cúmplices daquelas loucuras.

Há umas sacadas deliciosamente inventivas, como quando Nikki Six explica ao espectador que a história de como eles conhecerem o empresário não ocorreu da forma apresentada pela produção, mas que resolveram contar desta maneira porque o diretor achou ser mais interessante. Em outra passagem – a melhor e mais divertida visualmente – o filme acompanha um dia na vida do baterista Tommy Lee através de uma câmera em primeira pessoa, colocada na cabeça do ator, na qual Tremaine utiliza uma montagem ágil para dar uma veracidade divertida a cena, dando a sensação que o público está conferindo, em tempo real, a vida transloucada – entre tocar, cheirar e transar – de um roqueiro. São situações como esta, em sair da zona comum, que o filme nos faz entender quem são esse bando de loucos.

Roteiro clichê, mas honesto

O roteiro ainda que divirta, não esconde seus diversos clichês e problemas. Não espere grandes profundidades nas ações, dramas e conflitos dos personagens. Certas situações dramáticas são apenas superficialmente exploradas como o grave acidente de carro de Vince, o problemático casamento entre Tommy e atriz Heather Locklear – o filme deixa de fora a relação turbulenta do baterista com Pamela Anderson – e a doença degenerativa do guitarrista Mick Mars.

A impressão é que Tremaine se sai melhor em criar cenas voltadas para o besteirol e o humor politicamente incorreto, apresentando enorme dificuldade em operacionalizar o arco dramático. Tanto que o último ato do filme mais emocional, por focar na redenção da banda, perde o ritmo pela falta de precisão em impor um tom mais sóbrio.

Pelo menos, o texto é honesto em apresentar ao público, as divertidas lendas da banda, presentes em todas as suas polêmicas e excentricidades: a zoação e falta de respeito dos integrantes uns com os outros em relação às namoradas; a extravagância como aborda as enormes farras e destruições nos quartos de hotéis; o escatológico encontro entre Ozzy e Motley envolvendo formigas aspiradas e a degustação de urina (só faltou uma cena com “Golden Shower” para fazer a alegria do nosso atual presidente). The Dirt é um mergulho bem profundo e franco no mundo de excessos do rock’n roll.

Motley x Queen: Quem vence?

Como o Oscar aconteceu mês passado é difícil não comparar The Dirt com Bohemian. Neste ponto, a produção da Netflix tem um diferencial primordial em relação ao filme de Freddie Mercury: a sua honestidade de não romantizar as situações e relações dos músicos, do início ao fim sentimos que é um filme do Motley Crue e de seus integrantes. É curioso que ambos filmes são até semelhantes nas abordagens superficiais que fazem em relação aos seus personagens, entretanto, The Dirt parece ter uma coragem e franqueza de dialogar com a verdade, de mergulhar no lado obscuro da banda, sem ter o medo de mostrá-la em seus piores momento – algo que os membros do Queen, Brian May e Roger Taylor, amarelaram em Rhapsody.

Se Bohemian patinava na construção psicológica de Mercury e da sua sexualidade, pelo menos aqui temos uma aposta sem medo de ser feliz no coletivo e que explora a dinâmica do grupo – os quatro atores, desconhecidos do grande público, transmitem uma ótima interação, com destaque para Daniel Webber (Vince) e o rapper Manchine Gun Kelly (Tommy) – para criar um bom vínculo de empatia com o espectador através da rebeldia de cada integrante.

A desvantagem de The Dirt em relação à Bohemian se refere a sua parte musical. Não há grandes apresentações musicais e não há qualquer esforço do filme em explorar as músicas da banda ou procurar fazer uma reflexão direta do estilo de vida da cena hard rock da época. Uma pena que isso não aconteça, até porque o roteiro faz pequenas insinuações, em alguns momentos, que os roqueiros do glam metal, em sua grande maioria, eram garotos pobres que foram levados à fama e sucesso muito rápido e viveram o sonho americano no seu limite. Em outras palavras, o gênero musical e seu modo de ser teve papel fundamental em influenciar o Rap americano que surgiria na década seguinte.

Mesmo assim, meu veredicto final é que The Dirt – Confissões do Motley Crue soa mais legítimo que Bohemian. Uma autobiografia que retrata bem a tensão provocada pelos excessos da banda, auxiliado por um tom de camaradagem que torna tudo mais divertido. Não chega a ser uma biografia memorável, pois sobra ousadia e falta precisão, mas em um ano que ainda teremos Rocketman sobre a vida de Elton John, The Dirt  se destaca em captar a essência de uma das bandas mais loucas da cena do rock.