No começo da década de 1980, Steven Spielberg e Tobe Hooper lançaram Poltergeist: O Fenômeno (1982), que acabaria se tornando um pequeno clássico do terror ao mostrar uma típica família norte-americana de um subúrbio californiano aparentemente perfeito enfrentando fantasmas determinados a ficar com uma das suas filhas. Poltergeist era um filme comercial cheio de efeitos visuais e clima de trem fantasma, mas era – e ainda é – possível perceber nele noções subversivas na forma de subtextos. Como o de que o sonho americano esconde literais esqueletos enterrados no quintal, e que o maior medo da classe média ealta daquela época era o de ter seu lar, seu mundinho, invadido por elementos externos e diferentes do “normal”.

Poltergeist me veio à mente algumas vezes enquanto assisti a Them, nova série da Amazon Prime Video que, de acordo com seus criadores, será uma antologia de terror. Em essência, a história de Them é quase a mesma do filme oitentista e de várias outras obras do gênero: nos anos 1950, a família Emory se muda para um subúrbio com casinhas coloridas e gramados aparados. Mas a casa onde vão morar esconde uma maldição. A diferença é que os Emory são negros e vão morar num subúrbio totalmente branco. E puxa, isso faz diferença. A trama da série é inspirada por um contexto real da história da Califórnia, a Segunda Grande Migração do pós-guerra, no qual famílias negras eram encorajadas – na série, por motivos imobiliários escusos – a se mudarem para bairros chiques em busca de uma vida melhor, o que levava a conflitos raciais, claro.

Não me lembro de haver, em Poltergeist, nenhum morador negro no centro residencial onde se passava a história. Tinha um personagem negro no filme, um dos assistentes da parapsicóloga que ajudava a família da história, e ele era o único. Mas o que no filme oitentista era subtexto, Them traz para o primeiro plano narrativo: o terror experimentado pela família Emory os persegue desde uma tragédia racialmente motivada que nos é revelada ao longo da temporada. Eles já estão aterrorizados desde o começo do primeiro episódio e a situação só piora ao vermos o racismo explícito ao redor deles.

E isso, claro, antes mesmo das coisas sobrenaturais começarem a acontecer: Henry (Ashley Thomas), o patriarca, é engenheiro, mas sofre racismo no trabalho e começa a ver uma figura assustadora em blackface zombando da sua subserviência. Ruby (Shahadi Wright Joseph), a filha mais velha, faz amizade com uma colega de classe loirinha de olhos azuis que só ela vê. E a mãe, Lucky (Deborah Ayorinde) – “sortuda”, o que é irônico – e a filha mais nova, Gracie (Melody Hurd) começam a ver aparições cada vez mais sinistras.

SENSAÇÃO DE INCÔMODO CONSTANTE

O objetivo do criador Little Marvin e dos roteiristas da série é explorar o horror da condição negra nos EUA. O telespectador sente a opressão e o custo desse modo de vida sobre os protagonistas de  “Them”. O tom é incômodo em vários momentos: depois do primeiro episódio fisgar o telespectador, o segundo eleva o tom do desconforto a níveis mais altos. Nelson Cragg, principal diretor da temporada, estabelece esse clima de opressão com ângulos de câmera estranhos ou oblíquos, planos com split diopter onde as figuras em diferentes distâncias da câmera entram em foco ao mesmo tempo, e com a direção de arte e o som. Além de Cragg, outro diretor que comanda alguns episódios da temporada é o interessante Ti West, que dirigiu os ótimos longas de horror The House of the Devil (2009) e O Último Sacramento (2013).

O clima de incômodo às vezes se estende aos desempenhos dos atores, com Alison Pill vivendo a vizinha dos infernos – nos primeiros episódios, ela e seu sorriso forçado são as verdadeiras visões de horror do seriado – e Thomas e Ayorinde se entregando completamente ao clima de loucura que acomete seus personagens. O elenco de Them está muito bem, sem nenhuma nota dissonante.

E a série também é esquisita do ponto de vista estrutural. O quinto episódio, por exemplo, começa mostrando uma subtrama para depois mudar de rumo e revelar, num flashback, a real dimensão da tragédia que aconteceu com a família. Há um episódio inteiro dedicado à origem da maldição do subúrbio, fotografado num belo preto-e-branco. Ao longo dos episódios, há morte de bebês e negros tendo os olhos perfurados, a ponto de alguns segmentos começarem com um aviso de violência gráfica. Às vezes Them é difícil de assistir, com suas cenas de racismo poderoso e violência gráfica. Mas graças ao elenco e à direção, a série adquire um quê de desastre automobilístico, daqueles que fascinam e você não consegue tirar os olhos.

HORROR VINDO DA IGNORÂNCIA E DO ÓDIO

Them, no entanto, peca pelo excesso. Quanto mais os episódios avançam, mais estranho fica o desenvolvimento com Betty, a personagem de Pill, que vai se metendo em circunstâncias cada vez mais bizarras que desperdiçam o tempo do espectador – é a série sendo esquisita apenas pela própria esquisitice. Com o tempo, dez episódios também começam a parecer muito para a história – embora, felizmente, alguns deles fiquem com só meia hora de duração, ainda assim sente-se em alguns momentos um pouco de encheção de linguiça. Os clichês de terror também começam a dominar a narrativa. Apesar dos roteiristas fazerem o possível para ligá-los ao tema maior do preconceito racial, eles ainda não deixam de ser clichês – o reverendo malvado também desperta umas lembranças de Poltergeist 2 (1986)…  Os clichês e a forma como são tratados, aos poucos, vão minando a força dos episódios iniciais.

Mesmo perdendo um pouco de fôlego durante a temporada, Them está longe de ser um desastre e se conclui com uma cena final impactante. Não é uma experiência fácil, ao contrário do entretenimento dos anos 1980 que contou uma história similar com o objetivo de envolver o público. Os tempos são outros, e Them consegue, além de entreter e assustar – há uma ou duas cenas realmente assustadoras na série – explorar um pano de fundo social numa história antiga por outra perspectiva, e isso dá ao seriado o seu valor. Uma perspectiva de quem sabe que, infelizmente, nenhum horror sobrenatural se compara à ignorância e o ódio humanos.

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