Que Asghar Farhadi é um mestre, não se discute. Desde, pelo menos, Procurando Elly (2009), o diretor iraniano vem construindo um dos conjuntos mais intrigantes do cinema atual, em que sucessivos exames sobre a casca de harmonia e cordialidade da nossa chamada civilização – e a sua absoluta fragilidade – têm rendido algumas das cenas mais duras, e estupendas, da produção recente.

Ou, ao menos, era assim.

Em Todos Já Sabem, a primeira obra de nível realmente internacional de Farhadi, com atores estrelados (ninguém menos que Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín, os três intérpretes de língua espanhola mais celebrados da atualidade), algo escapa ao controle meticuloso de Farhadi sobre a sua matéria-prima – e o que se tem é um trabalho desigual, onde momentos tipicamente brilhantes se alternam com outros quase constrangedores. Felizmente, é uma viagem que ainda vale acompanhar até o fim, apesar dos tropeços.

Laura (Cruz) retorna à Espanha para o casamento da irmã, após anos vivendo na Argentina. Ela traz a filha adolescente (Carla Campra) e o filho pequeno, e, como sói acontecer, no começo tudo é só alegria. Já a essa altura, o filme mostra que há algo de mais intenso entre Laura e um amigo da família, Paco (Bardem), ainda queimando. Chegada a festa de casamento, uma coisa terrível acontece – e Laura é jogada em um verdadeiro pesadelo, que draga Paco, o resto da família e obriga o marido de Laura, Alejandro (Darín), a pegar o primeiro voo para o país.

O BOM E O RUIM EM SAIR DA ZONA DE CONFORTO

É uma situação comum ao cinema de Farhadi – um evento imprevisto que ativa toda uma teia de segredos, rancores e ressentimentos que se supunham enterrados, mas continuam bem vivos. E é quando ele volta o seu olhar microscópico para esses dramas domésticos que lembramos o grande cineasta de A Separação (2011) e O Apartamento (2016): especialmente na segunda hora do filme, quando toda a crise já foi detonada e vemos o tecido familiar e fraternal se corroendo, Farhadi mostra o seu poder para construir cenas catárticas, em que planos, diálogos, luz e o timing da montagem formam um conjunto assombroso, de tão exato.

Infelizmente, é também o primeiro filme desde a maturidade artística do diretor em que se podem apontar francos equívocos no seu trabalho. O mais evidente deles é a falta de familiaridade do cineasta com seu material. Os filmes de Asghar Farhadi devem uma boa parte do seu poder ao domínio do artista sobre o elenco, a geografia e mesmo a cultura e o idioma de suas narrativas – o que, com filmes rodados primariamente no Irã e na França (o cenário de O Passado), onde Farhadi também tem residência, nunca havia sido problema até aqui.

Mas, na Espanha, esse sentir-se à vontade não se repete, e temos desde uma visão estereotipada da Espanha e dos espanhóis – à maneira do Vicky Cristina Barcelona de Woody Allen (por sinal, também estrelado por Bardem), trata-se de um lugar idílico de vinhedos, aldeias e festas animadas a flamenco – ao desempenho irregular do elenco, que vai do sem rumo (Campra, arfando e rindo num frenesi incômodo – era pra ser uma adolescente encantadora e cheia de vida?) ao desanimado (Penélope Cruz, que não tem muito a fazer além de chorar) ao hesitante (Bardem, que começa sugerindo um personagem que irá por um rumo completamente diferente) ao seguro (Darín e Eduard Fernández [do estupendo O Homem das Mil Caras, uma joia que precisa ser descoberta por mais cinéfilos no Brasil], os nomes mais comedidos e sutis do projeto).

É frustrante – não dá para acusar Asghar Farhadi de acomodação, o que deveria ser ótimo, mas o resultado artístico do filme sofreu com a falta de domínio do cineasta sobre seus novos elementos. Ainda assim, mesmo se a voltagem não é tão intensa quanto a de A Separação (e quantos filmes, afinal, podem se gabar disso?), Todos Já Sabem tem um número suficiente de grandes cenas para colocar esse trabalho, senão entre os maiores do diretor, como um dos bons exemplares do cinema europeu em 2019.