No primeiro momento, “Transversais” pode ser lembrado como o filme que Bolsonaro desqualificou em uma de suas famigeradas lives. Pensado para ser uma série documental, o projeto de Emerson Maranhão, contudo, saiu do papel como um filme sensível e carregado de afetos, disponível no catálogo da Netflix.

O Brasil ocupa o primeiro lugar como o país que mais mata pessoas transexuais no mundo; independente de quando a pesquisa tenha ocorrido, esse resultado se apresenta constantemente. Embora Maranhão use esse dado como ponto de partida da projeção, o documentário subverte essa ideia ao contar histórias de identificação, aceitação e, principalmente, como o afeto é importante nesse contexto.

Histórias universais de amor

Acompanhamos a história de cinco personagens. Cearenses, profissionais bem-sucedidos e se permitindo ser livres para viver como são. Por meio de depoimentos entrecortados, conhecemos os processos de amadurecimentos, aceitação dos familiares e o caminho para se estabelecerem socioeconomicamente.  Ao apresentá-los dentro dessa configuração, Maranhão nos permite ter duas percepções centrais: individualidade e existência – isso para além da caixa limitadora que a sociedade impõe. Pontos que, para mim, são cruciais para identificação e geração de empatia do espectador fora da bolha.

O roteiro de “Transversais” conta histórias universais, como, por exemplo, a de pais que querem proteger sua prole e filhos que querem dar orgulho aos genitores. Afinal, quantas narrativas reais não conhecemos que têm esses nortes como foco?  Ao escolher mostrar as particularidades e subjetividades de cada um partindo de suas ocupações, Maranhão mostra um outro lado de quem é obrigado a se tolher pelos parâmetros limitadores da sociedade, um lado que existe para além de convenções e dogmas. Isso oferece um tom diferenciado a “Transversais”.

Um mar de afetos

A verdade é que o documentário consegue, dessa forma, oferecer uma outra vertente para histórias de superação. Em um país preconceituoso, racista e patriarcal, os relatos apresentados partem numa contramão, em que o afeto do núcleo mais próximo é determinante para o processo de maturação e estabelecimento. É perceptível como esse assentamento vai além do grupo familiar. Na narrativa de Kaio Lemos, Samilla e Erikah esse apoio é evidente por meio da religião candomblecista, da sororidade e do serviço público, por exemplo.

O carinho latente em todas as histórias salienta a importância e diferença que uma base sólida traz na jornada dos seres humanos. Temos cinco indivíduos de classes sociais, origens, religião e idade diferentes, que se sentem pertencentes e integrados a sociedade por receberem o afeto que lhes possibilita permanecerem firmes. A cada depoimento dado essa certeza se confirma e causa comoção por percebermos o rio de possibilidades que alguém pode ter com o depósito de amor necessário.

Os aspectos técnicos de “Transversais” contribuem também para esse sentimento de acolhimento. A fotografia que capta detalhes do rosto deles, nos faz ter uma percepção mais intimista de suas narrativas, junta-se a isso as cores quentes do nordeste brasileiro, as quais, além de emanar o calor característico da região, nos deixam mais a vontade dentro do ambiente e de suas trajetórias. A trilha sonora diegética também contribui para essa sensação de imersão.

“Transversais” é aquele tipo de projeto feito para emocionar e aquecer o coração. O material apresentado não foge da estrutura tradicional de documentários e isso não o prejudica, tendo em vista, que sua força são seus personagens e o que eles têm a nos contar gerando subversões do que estamos acostumados a ver e da maneira como a identidade de gênero é abordada no cinema e, justamente, por isso grandes momentos para guardar na memória afetiva.

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