Com “Utopia”, a diretora amapaense Rayane Penha mostra ao público como a noção de ritmo é importante à narrativa documental no audiovisual. Dentre offs relembrando um sonho fantástico da diretora com o pai, depoimentos de conhecidos, a releitura de cartas paternas e até mesmo uma performance, podemos perceber que o encadeamento dos muitos elementos escolhidos para o produto final estão longe de apontarem para uma desordem.

Assim, “Utopia” vai na contramão de um filme que, sem saber o que dizer, opta por apelar para tudo. Longe disso, é a condução gradual e consciente das opções disponíveis que permite-nos construir sentidos em uma condução segura por parte de Penha, o que demonstra sua mão firme e, ao mesmo tempo, sensível para a direção de um tema a ela tão próximo.

O curta apresenta, em uma narrativa que traz algo de caudaloso das águas barrentas do garimpo, o resgate pessoal da diretora pela figura do pai, que faleceu em um acidente de trabalho no garimpo no Vale Vila Nova (AP). Tal ausência, longe de deixar um vácuo, é o espaço onde Penha permite florescer a memória e a reconfiguração da memória através da criatividade, transformando-a no motor de imagens inventivas e uma cadência envolvente.

A montagem, então, parece associar o senso de movimento e fluxo ao próprio sentido do luto enquanto aprendizado que se precisa vivenciar continuamente para saber como lidar. Assim, a cadência das imagens, que muito ganham pela direção de fotografia acertada, termina por passar a sensação de que o espectador está, ele próprio, aprendendo a lidar com isso junto com a diretora, fazendo com que o documentário alimente grande empatia por parte do público.

Mas esse é também um processo fragmentado, de altos e baixos e preferencialmente social, posto que não é só uma família que perde um ente, mas uma comunidade. Isso talvez explique as diversas escolhas da diretora: a performance em dança, que rende belas sequências em meio ao barro que parece acompanhar tudo no universo da “febre do ouro”; as fotos e vistas da vila, todas permeadas pela figura do pai e ressignificadas por sua partida; e os offs de amigos e parentes, seja falando do pai de Rayane, seja falando sobre o fascínio que leva as pessoas ao garimpo.

Sobre este último ponto, é relevante destacar ainda a condução das entrevistas. Fica aparente ao espectador que Penha não se deixou envolver por armadilhas que a entrevista com personagens tão próximos de si poderiam causar, trabalhando bem a confiança entre documentarista e entrevistado para extrair algo espontâneo, interessante e nunca piegas para se trabalhar na montagem final do curta.

Com isso, “Utopia” se destaca pelo equilíbrio e segurança na direção, mas sem nunca deixar isso saltar aos olhos o mais importante: as emoções que o curta emana à sensibilidade do espectador.