O western, como gênero cinematográfico, já foi canonizado, parodiado, reinventado, combinado com outros, descontruído… Mas, acima de tudo, foi usado para fornecer boas doses de diversão honesta para o público ao longo das décadas. É esse último caminho que Vingança & Castigo, longa de estreia do produtor musical Jeymes Samuels como roteirista/diretor, trilha. A produção da Netflix é praticamente um catálogo de clichês do gênero, embalado num pacote vibrante e estrelado por um elenco quase que inteiramente afro-americano. E é um elenco fabuloso: Jonathan Majors, Zazie Beets, Idris Elba, Regina King, Delroy Lindo…

O filme já começa fazendo referências explícitas a Sergio Leone e ao seu clássico Três Homens em Conflito (1966). E pelo resto da sua duração, acompanhamos o conflito entre as quadrilhas de Nat Love (interpretado por Majors) e de Rufus Buck (Elba). Love, apesar de ser um fora-da-lei, é um cara do bem – ele estava até contente em deixar Buck, que matou sua família, trancafiado em uma prisão. Mas quando este é libertado – de uma maneira mal explicada pelo roteiro – o herói não tem escolha e junto com seus aliados, parte para enfrentar a quadrilha do mal. No lado dos malvados tem a Regina King, então, ponto a favor deles.

 AÇÃO PARA TODOS OS LADOS

Vingança & Castigo é um filme de estilo. O diretor é vaidoso a ponto de pausar a trilha sonora na hora em que seu nome aparece, destacando-o. A pegada violenta, com personagens todo o tempo competindo entre si para ver quem é o mais badass, o sangue e alguns momentos de humor lembram Quentin Tarantino – e parece não ser à toa, pois Lawrence Bender, produtor que foi parceiro do QT de Cães de Aluguel (1992) a Bastardos Inglórios (2009), trabalha em Vingança e Castigo.

Quem costuma achar os westerns do passado paradões e meio chatos, aqui não terá do que reclamar. O filme de Samuels tem ação, fotografia deslumbrante e de cores muito fortes – cortesia de Mihai Malaimare Jr. – e sempre alguma coisa acontecendo. Também há, pelo menos, um lance inspiradíssimo de humor: quando os heróis vão a uma cidade só de gente branca, está tudo repleto de neve e a brancura domina até os cenários interiores.

Ha vários momentos de criatividade com a câmera: um movimento para o lado revela três personagens enfileirados, cada um mirando a nuca do outro; ou na apresentação da personagem de Zazie Beets, os zooms súbitos acompanhando batidas no chão lembram momentos semelhantes nos filmes de Sam Raimi. Vale lembrar que Raimi também fez um western divertido e um pouco tresloucado, Rápida e Mortal (1995). A referência é clara…  

ELENCO PROTOCOLAR

Tudo isso para disfarçar o fato de que a trama em si é bobinha, clichê mesmo – e uma revelação dramática perto do final amplifica o melodrama, mas o roteiro nunca a explora direito, até porque quando ela vem, faltam 10 minutos para o longa acabar. Na história tem um ataque a um trem, duelos, um assalto a banco e um grande tiroteio no clímax. É como se o empolgado diretor/roteirista, interessado em brincar com o gênero, tivesse tentado incluir todos os elementos dele e mais alguns. E todos os personagens são arquétipos bem básicos do western: o herói em busca de vingança, o vilão impiedoso, o jovem metido que quer ser o gatilho mais rápido, a mulher durona…

Percebe-se que o elenco todo se divertiu a valer fazendo Vingança & Castigo, mas são poucos dentre os atores e atrizes que conseguem transcender essa característica básica, esquemática, do roteiro. Em muitos momentos eles estão fazendo pose: quando vemos a personagem de Regina King pela primeira vez, ela está sobre um cavalo, parada nos trilhos do trem e nem pisca ao forçar a locomotiva a parar. Todo mundo no filme tem um momento, ao som de alguma música esperta e moderna, em que faz alguma coisa para mostrar o quanto são ‘bonzões’ – ou “bonzonas” – e, para o filme, isso conta como construção de personagem.

Alguns atores conseguem elevar seus personagens, graças a seus próprios carismas, e não à toa, são os melhores do elenco. Jonathan Majors rouba todos os olhares, mais uma vez, graças a sua presença de cena, e LaKeith Stansfield transforma o seu vilão – tão rápido no gatilho quanto traiçoeiro – em um grande destaque do filme. Por outro lado, Idris Elba curiosamente não tem muito a fazer – para um personagem que é chamado de diabo por vários outros durante a trama, são poucas as malvadezas.

DECLARAÇÃO INCLUSIVA

Apesar desses poréns, Vingança & Castigo é um filme divertido, ao qual se assiste com facilidade. Quem disse que estilo sem substância não vale? Vem à memória outros exemplos de westerns cujo único objetivo foi a diversão. Silverado (1985), por exemplo, tinha uma vibe semelhante com, pelo menos, um personagem negro – dentre os heróis do filme, tinha Danny Glover. Se não chega a ser tão legal quanto Silverado, são duas obras cinematográficas criadas com a mesma mentalidade: homenagear o gênero e se divertir com ele.

O diferencial do filme de Jeymes Samuels é colocar seu elenco e seus personagens negros em posições que praticamente nunca vimos nas telas. Há uma diversão, um senso de prazer e autoafirmação ao se assistir ao filme e se deixar levar pela brincadeira. E claro, não há nada de errado em se divertir, ainda mais com um confeito colorido e feito com prazer como esse. Obviamente, ao reclamar o western para uma perspectiva afro-americana, os realizadores de Vingança & Castigo estão fazendo uma declaração. Porém, para além da política, felizmente não se esqueceram de entreter o público. E assim, com novas perspectivas e velhos enfoques, entre inovações e arquétipos muito antigos, o western continua vivendo…

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...

‘Instinto Materno”: thriller sem brilho joga no seguro

Enquanto a projeção de “Instinto Materno” se desenrolava na sessão de 21h25 de uma segunda-feira na Tijuca, a mente se esforçava para lembrar da trama de “Uma Família Feliz”, visto há menos de sete dias. Os detalhes das reviravoltas rocambolescas já ficaram para trás....

‘Caminhos Tortos’: o cinema pós-Podres de Ricos

Cravar que momento x ou y foi divisor de águas na história do cinema parece um convite à hipérbole. Quando esse acontecimento tem menos de uma década, soa precoce demais. Mas talvez não seja um exagero dizer que Podres de Ricos (2018), de Jon M. Chu, mudou alguma...

‘Saudosa Maloca’: divertida crônica social sobre um artista boêmio

Não deixa de ser interessante que neste início da sua carreira como diretor, Pedro Serrano tenha estabelecido um forte laço afetivo com o icônico sambista paulista, Adoniram Barbosa. Afinal, o sambista deixou a sua marca no samba nacional dos anos 1950 e 1960 ao...

‘Godzilla e Kong – O Novo Império’: clima de fim de feira em filme nada inspirado

No momento em que escrevo esta crítica, caro leitor, ainda não consegui ver Godzilla Minus One, a produção japonesa recente com o monstro mais icônico do cinema, que foi aclamada e até ganhou o Oscar de efeitos visuais. Mas assisti a este Godzilla e Kong: O Novo...

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...