Não vou negar que filmes que se passam em um único ambiente, exercem um grande fascínio no meu gosto cinéfilo. Talvez, pelo fato de imaginar, o quanto deve ser complicado para o diretor criar uma história em que todo o enredo se desenvolva em um único espaço e consiga envolver ou cativar o espectador para que ele não fique entediado na sessão. Parte, desta adoração por esse tipo de filme, foi gerado por dois mestres cinematográficos: Sidney Lumet e seu maravilhoso clássico de tribunal Doze Homens e Uma Sentença e Alfred Hitchcock com seu vigoroso suspense, Festim Diabólico.

É verdade que ambos cineastas, tinham ao seu favor, diversos personagens à serviço das suas narrativas angustiantes. Por isso, o que podemos dizer de realizadores que tem em mãos um único cenário e personagem? Eles precisam ter um excelente jogo de cintura para alinhar sua história envolvente com uma interpretação espetacular, além de não perder as rédeas da sua narrativa.  No cinema recente, duas produções abordaram esta perspectiva com alto grau de qualidade: o eficiente Enterrado Vivo com um Ryan Reynolds, pré- Deadpool e desconhecido do grande público; e o ótimo Locke estrelado por Tom Hardy, que na época, começava a se destacar na carreira – pessoalmente, considero ela, a sua melhor atuação.

Calhou do ótimo Culpa, filme dinamarquês, ser o mais novo integrante deste seleto grupos de produções que mesmo com parcos recursos, são movidos por uma criatividade fora de série para nos deixar hipnotizados nos seus econômicos 85 minutos. O filme marca a estreia na cadeia de diretor de Gustav Moller e por muito pouco, não configurou na lista final dos indicados ao Oscar de filme estrangeiro deste ano.

Culpa é um thriller de suspense com elementos policiais, que se passa em um centro de emergência policial e com um único personagem de destaque, o policial Asger (Jakob Cedergren, excelente) que durante o final do seu plantão, recebe a ligação de Iben, uma jovem mulher que alega que foi sequestrada pelo ex-marido Michael, que tem antecedentes criminais e está em disputa pela guarda dos dois filhos com a mulher. A partir desta sinopse, o filme ganha contornos surpreendentes junto ao público.

Por sinal, Culpa casa bem com a frase “não existe arte sem invenção”, até porque Moller busca formas criativas de contar sua história, para deixar a espinha do espectador tensionada ao mesmo tempo que o deixa sem fôlego com aquilo que presencia na tela. Neste aspecto, o jovem diretor não encaixa o seu filme no suspense tradicional, já que em nenhum momento vemos – nas aparências, nas ações e nos lugares – Iben, Michael ou um dos filhos, só escutamos suas vozes na conversa por telefone com Asger. Sob este viés, Moller constrói um suspense onde som e imagem são estratégias para direcionar o público a uma aventura tensa.

Sentimos os planos e suas as imagens como um elemento de incômodo porque eles representam a imobilidade do policial, enquanto o som (os diálogos das personagens e os sons ambientes como ruídos de carros, setas, chuva e silêncios, dão o significado para a construção do quebra-cabeça) é um fator primordial para que aventura se entrelace de modo fluído e o deixe longe do tédio. Desta maneira, Culpa é elaborado dentro de um suspense sonoro que se torna uma experiência narrativa incrível pelo seu poder de sugestão de estimular a imaginação do espectador e a sua importância na busca pela resolução dos mistérios criados pelo texto.

Isso é facilitado pela escolha de uma montagem inteligente, que proporciona tensão com tão pouco a mostrar (e oferecer) na tela para quem assiste. O ritmo jamais esmorece, porque o diretor transforma sua câmera estática, sempre próxima ao rosto de Asger, em um exercício claustrofóbico de agonia e inquietação ao explorar diversos ângulos, luzes e sombras por meio do formato scope na captura do ambiente (o centro de emergência, cenário do filme) e à medida que a investigação avança, os espaços se tornam escuros e apertados para o policial – a luz vermelha do telefone do policial ganha uma bela analogia de que ele está em um confessionário.

Com isso, o drama e o suspense que Asger enfrenta na sua trajetória, é acompanhado por um público que também se sente extenuado na busca das verdades dentro da história. É bom ver uma história no cinema, onde personagem e público buscam juntos desvendar o mistério, retornando aquele bom cinema storytelling de contar histórias.

Logo, uma das belas virtudes do filme é utilizar a temática da culpa nunca de forma óbvia. O roteiro inteligente utiliza o tempo e o espaço para confrontar a rapidez como formamos nossas convicções, isto é, criamos o nosso próprio julgamento sobre o fato que está acontecendo, sem filtrar antes, as informações necessárias. Moller aborda essa história claustrofóbica, muitas vezes amarga e difícil de digerir, para expor o quanto precisamos desconstruir as aparências de como julgamos as pessoas – as vozes com quem Asger conversa a distância ajudam a expandir o espaço-tempo moral do personagem frente suas convicções.

É de elogiar a atuação de Jakob Cedergren, que carrega o filme praticamente nas costas, ao criar seu Asger com complexidade dentro de um leque de expressões e gestos variados, revelando uma personalidade ao mesmo tempo autoritária, como dedicada e humana. O filme, talvez só cometa um pecado ao expor seu “plot-twist” um pouco antes do necessário, mas não é nada que diminua a engenhosidade do seu roteiro.

No geral, Culpa proporciona uma belíssima experiência imersiva. Um daqueles trabalhos, que vez por outra, aparecem no cinema com o pensamento fora da caixa, por se revelar um tour de force necessário para esses tempos de pré-julgamentos e nervos à flor da pele. Ao mostrar nos últimos momentos, Asger emocionalmente destruído, trôpego, sacando o celular para fazer uma ligação, Moller deixa à sensação que estamos presenciando o início de outro filme, instigando a criarmos no próprio imaginário, todas as situações do outro lado da linha. Culpa não é apenas um conto moral com toques de terror. É também uma aula esperta dentro da linguagem cinematográfica, cujas reflexões e discussões permanecem por horas nas nossas mentes.