Um dos curadores da Mostra de Cinema de Tiradentes defendeu durante o evento que o Poder Público crie editais para fomentar a produção de filmes dirigidos por homens e mulheres negras. Para Cléber Eduardo, ainda é raro no audiovisual brasileiro o lançamento de filmes onde atores negros não estão interpretando papéis que remetem a sua condição social. Segundo ele, a diversificação dessa representação só vai ocorrer quando houver mais diretores e produtores negros.

“Acho que precisa ter mais proponentes negros, homens e mulheres. Isso é o que vai mudar de verdade. Não serão os diretores e produtores brancos filmando negros que vão mudar a imagem dos negros no cinema. Aí tem de ter edital para proponentes negros. Também há poucos filmes dirigidos por negros, porque eles não estão tendo acesso aos incentivos”, afirmou Cléber.

De acordo com o curador, o cinema muitas vezes reforça um estereótipo.

“A maioria dos filmes coloca os negros em lugar que já habituamos vê-los. Sofrendo como escravos, apanhando na favela. Não vai acontecer uma mudança por osmose e nem da noite para o dia. Precisa de incentivo. Mas está ainda tudo na mão dos homens brancos”, afirmou.

Para Cléber, é possível notar avanços em curtas-metragens. Em longas, a dificuldade é maior devido a questões estruturais e exigências financeiras.

O debate sobre a questão ganhou espaço na 21ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, iniciada sexta-feira (19) e vai até o próximo sábado (27). O grande homenageado do evento é o ator Babu Santana, que traz no currículo a participação em filmes como Cidade de Deus (2002), Uma Onda no Ar (2002), Quase Dois Irmãos (2004), Batismo de Sangue (2006), Estômago (2007), Meu Nome Não é Johnny (2008) e Tim Maia (2014), no qual interpretou o cantor. Além disso, a abertura do festival realizou a pré-estreia de Café com Canela, filme dirigido por uma mulher negra, Glenda Nicácio, em parceria com Ary Rosa.

Foi o primeiro longa-metragem da carreira de ambos. Café com Canela traz uma história protagonizada por negros que se passa no município de Cachoeira (BA). No filme, as questões sociais não são levadas para as telas de forma explícita. Os personagens vivem romances e dramas pessoais, com a perda de pessoas próximas.

“É uma história que nós queríamos contar. E o lugar era importante para gente. Então, partiu de uma naturalização. Não há lógica de contar uma história em Cachoeira interpretada por brancos. É uma cidade negra. Mas claro que acabou virando uma ação política. Hoje, os dados mostram um cenário preocupante no Brasil”, diz Ary Rosa.

Em 2016, um levantamento divulgado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mostrou que nenhum dos 20 filmes nacionais com as maiores bilheterias entre 2002 e 2014 foi dirigido por uma mulher negra e apenas 2% por homens negros.

A mesma pesquisa também destacou que, nessas produções, os elencos tiveram 45% de homens brancos, 35% de mulheres brancas, 15% de homens negros e 5% de mulheres negras.

Para a diretora Glenda Nicácio, não dá para negar o papel político de Café com Canela. “Um grande passo foi conseguirmos trazer a esfera dessas crônicas cotidianas para o filme. Podemos fazer arte falando de afeto, de amor, de outras coisas que não sejam ligadas necessariamente às questões sociais”.

Para Glenda, a visibilidade alcançada pelo filme fortalece o debate sobre o negro no cinema. “Acho que estar nos lugares é fundamental. Ter o Babu aqui, a família do Babu aqui. Estou aqui na Mostra de Cinema de Tiradentes, alguém está me vendo. É assim que a gente começa”.

O ator Babu Santana falou sobre a importância de filmes como Café com Canela. “Como cidadão negro, sinto falta de filmes que colocam o negro como personagem, sem precisar falar da cor da pele ou da condição social. Você vê aquele romance tão lindo como o do Marcos e da Violeta no Café com Canela. Não fiquei pensando que era um romance lindo de dois negros. Eram dois seres humanos. Nós somos seres humanos. Nossas histórias são tão interessantes como qualquer outra. Nós brigamos, amamos, nos emocionamos.”

Ao mesmo tempo, Babu destacou que não vê problemas em trabalhar em filmes onde a condição social do negro é uma questão. “Não tenho problema em fazer o porteiro ou o empregado, desde que se mostre as complexidades desses personagens. Depois do Cidade de Deus, tinha esse debate do negro como bandido. Na sequência, veio o convite para fazer Quase Dois Irmãos, um filme da Lúcia Murad. Não ia deixar de trabalhar com ela porque o personagem era um bandido. O filme falava da década de 1970. Tinha um trabalho de pesquisa e eu adoro as mensagens que a Lúcia passa”.

Coordenadora-geral da Mostra de Tiradentes, Raquel Hallak destaca a importância que o evento está dando ao tema. “Nessa edição temos um fato inédito que são quatro mulheres negras ocupando a direção de filmes. Três de curta-metragem e um de longa, que foi o filme de abertura Café com Canela. Na programação, teremos esta semana um debate sobre a representatidade da mulher negra no audiovisual, porque é uma coisa quase que inexistente se formos buscar na história do cinema brasileiro”, acrescentou.

Mulheres

No ano passado, a 20ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes recebeu o maior número de inscrições de filmes dirigidos por mulheres. Foram 37 longas-metragens, o que representa 19% do total de inscritos. Os números refletiram na programação. Numa programação com 108 títulos, incluindo os curtas-metragens, foram exibidos 43 que contavam com uma mulher na direção, cerca de 40%, também um recorde.

Este ano, porém, esses indicadores foram menos expressivos. “Sentimos um recuo. Pode ser cíclico ou os filmes não ficaram prontos. O fato é que dimuniu o número de mulheres”, disse o curador Cléber Eduardo. A programação desta edição envolve 102 produções, sendo 72 curtas-metragem e 30 longas. Deste total, 32 tiveram mulheres na direção, o que representa 31%.

Além dos filmes, a Mostra de Cinema de Tiradentes traz em nove dias de evento diversos debates, intervenções e performances artísticas, apresentações musicais e outras atividades, todas gratuitas.

A 21ª edição do festival debate a  temática “chamado realista”. Também está sendo celebrado o aniversário de 300 anos da cidade mineira. O evento é produzido pela Universo Produções, com apoio do Ministério da Cultura.

da Agência Brasil