Foi tão de surpresa que ainda não deu tempo a ninguém de se recuperar do baque. Na madrugada quente desta segunda-feira, 11 de janeiro, a internet foi avassalada pela notícia do falecimento de David Bowie – ou David Robert Jones, músico nascido em Londres em 1947 e que, pelas últimas quatro décadas, sacudiu a música pop com glamour, teatralidade e uma insaciável curiosidade musical, desfechando tendências e enriquecendo a cena artística como só os Beatles, antes dele, foram capazes – e ninguém chegou nem perto depois.

A sua música era rock sem tirar nem pôr, mas, ao contrário da ideia que fazemos hoje do gênero, nela cabia tudo: da guitarra mais hard ao piano clássico, do R&B americano à eletrônica alemã, do teatro kabuki ao distanciamento crítico de Bertolt Brecht, das colagens alucinadas de William Burroughs ao fluxo de consciência de James Joyce. E suas letras eram ricas em citações e alusões, passeando pelo imaginário contracultural e erudito com habilidade, e registrando, no calor do momento, as monumentais transformações comportamentais da juventude, principalmente entre as décadas de 1960 e 80. Uma parte fundamental desse processo era o cinema – e Bowie estava atento a ele também.

Os filmes impregnam a música de David Bowie, com um nome acima de todos: Stanley Kubrick. Não apenas o impacto de ver 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) foi seminal para a sua carreira, dividindo-a em antes e depois – levando-o a compor “Space Oddity”, seu primeiro grande sucesso –, como referências à sua obra se espraiariam por outras canções. Em “Suffragette City”, por exemplo, o cantor refere-se a um “droogie” que vem atrapalhar a festa – droogies era como os sádicos moleques de Laranja Mecânica, o incendiário clássico de 1971, chamavam uns aos outros, entre uma facada aqui e um copo de leite acolá. O clima de absurdo e violência desse filme também está presente nas letras de Diamond Dogs, o grande disco de 1974, que marcava a despedida dos Spiders from Mars. Por sinal, o álbum começou como uma versão musical do romance de George Orwell, 1984, adaptado para o cinema em duas ocasiões: a primeira em 1956, e a mais conhecida, com John Hurt, em 1984 mesmo.

Ainda em Diamond Dogs, a canção-título menciona o filme Freaks, de Tod Browning, obra-prima do terror que voltava a circular entre os cinéfilos londrinos, após décadas de esquecimento. Com uma trama envolvendo aberrações de circo reais, o filme espantou o público de 1932, levando a MGM a engavetá-lo. No magnífico Hunky Dory, de 1971, ainda há espaço para Greta Garbo (“Quicksand”), Mickey Mouse (“Life on Mars?”) e Andy Warhol (“Andy Warhol”). Tá bom ou quer mais?

A verdadeira medida da paixão de Bowie por cinema, porém, não está nas letras dos discos, mas em seu trabalho como ator. Ainda na adolescência, ele alternava a admiração por James Brown e bandas mod inglesas com aulas de mímica e participações em grupos de teatro experimental. Essa verve de palco é que faria, num primeiro momento, a sua fama como músico – como comprova o clássico documentário de D. A. Pennebaker sobre o último show da banda Spiders from Mars, um grupo fictício de músicos vindos do espaço, liderados por um guitarrista com uma mensagem apocalíptica – Bowie, em sua persona mais flamejante: Ziggy Stardust. O filme, lançado em 1973, entrou direto para a antologia do cinema direto americano – além, é claro, dos maiores concert films do cinema.

A incursão definitiva, porém, viria na pior fase da vida do cantor: a da sua estadia nos Estados Unidos, entre 1974 e 1976. Em meio à roda-viva de shows, festas e consumo desenfreado de cocaína – que arruinaram a sua já trepidante forma física, transformando-o numa figura magérrima, de rosto chupado e sem sobrancelhas – o diretor Nicolas Roeg teve a ideia de encaixá-lo no projeto de ficção científica que ele iria filmar em breve: O Homem que Caiu na Terra (1976).

Era perfeito: o protagonista, Thomas Jerome Newton, era um alienígena que vinha à Terra com o propósito de fazer fortuna, para construir uma máquina capaz de levar a água dos oceanos para o seu planeta, então reduzido a um imenso deserto, com os últimos remanescentes à morte. Só que, solitário, carente e sujeito aos ardis humanos, Newton vê aos poucos a sua determinação vacilar. Bowie, à época, ainda vivia preso à figura do E.T. Ziggy, e sua aparência frágil, pálida e depressiva o tornavam quase uma encarnação live action de Newton. Sua expertise de ator, a mão segura de Roeg, as ótimas participações de Candy Clark e Rip Torn nos papéis coadjuvantes, o roteiro ousado e reflexivo, tudo coadunou num clássico do sci-fi, mas que não vingou na bilheteria, em parte por causa das tórridas cenas de nudez e sexo. Mas estava provado: Bowie, além de um grande cantor, também era um ator para se levar a sério.

O filme ganhou um cult following ao longo dos anos, mas foi um divisor de águas (mais um) mesmo na carreira musical do astro: suas pesquisas sobre música eletrônica, que ele usaria para compor a trilha (infelizmente descartada por Roeg) desaguariam, um ano depois, nos dois grandes discos gravados por Bowie em Berlim, onde se refugiou para se recuperar das drogas e pôr a carreira (e a vida pessoal) nos trilhos: Low e “Heroes”, que, com seus instrumentais fascinantes, quase clássicos, e suas canções diretas e angustiadas, influenciariam uma geração de músicos jovens, que depois pintariam os canecos nas cenas pós-punk e new romantic da Europa: do Joy Division ao Duran Duran, Bowie se tornara uma referência incontornável para a nova música. A estética futurista de suas apresentações também marcaria o imaginário visual da época, influenciando obras como o filme Blade Runner: O Caçador de Androides (1982), de Ridley Scott – por sinal, uma das obras supremas do sci-fi no cinema.

A volta à forma foi celebrada num disco de 1980, Scary Monsters (and Super Creeps), que, em algumas faixas, conseguia sintetizar a catarse glam do início dos 70’s e a elaboração instrumental dos LPs alemães: “Ashes to Ashes”, “Fashion” e a faixa-título seguramente estão entre os grandes momentos da obra de Bowie. No mesmo ano, ele também retomou o trabalho de ator, com uma elogiadíssima adaptação teatral de O Homem Elefante, o filme de David Lynch sobre o infeliz John Merrick, homem com uma doença deformatória que era exibido em circos e universidades na Inglaterra do século XIX. Infelizmente, a morte de um grande amigo do cantor – John Lennon – pôs fim ao projeto. Temendo por sua segurança, ele cancelou a peça e deixou os admiradores à míngua.

1980 também é importante por registrar outra grande contribuição artística de Bowie: ele pode ter sido o inventor do… videoclipe. Em parceria com o cineasta David Mallet, o astro, que fazia vídeos promocionais de suas músicas desde pelo menos 1972, intuiu que a leitura visual de uma canção podia servir a propósitos criativos. A partir do disco Lodger (1979), os clipes passaram a ser mais narrativos, trazendo histórias que complementavam o que era dito em sons. “DJ”, “Boys Keep Swinging” (com Bowie vestido de mulher) e, principalmente, “Look Back in Anger”, são dos primeiros music videos de fato, explorando as possibilidades artísticas do novo formato. Mas o primeiro exemplar acabado do gênero – e o maior clipe de Bowie – tem de ser “Ashes to Ashes”: com o cantor vestido de pierrô, entre um hospício e um desolado lixão industrial, a obra é o marco inaugural dessa mídia. As celebradas criações de Michael Jackson, por exemplo, só viriam dois anos depois.

Os filmes propriamente ditos foram uma preocupação central da obra de Bowie nos anos 1980. Mais até do que os discos – de Let’s Dance (1983), que fechava o glorioso período na gravadora RCA, até o fim da década, o astro viu sua popularidade crescer a níveis assustadores, de forma inversamente proporcional à qualidade da música –, o cinema foi a grande vitrine artística de David Bowie.

É a época de Fome de Viver (1983), o classudo thriller de estreia de Tony Scott, envolvendo vampiros, rock gótico e lesbianismo. Com Susan Sarandon, Catherine Deneuve e Willem Dafoe no elenco, é mais um merecido cult da época, com sua fascinante trama sobre o arrefecimento da paixão entre imortais. Numa direção totalmente diferente, mais ainda assim, cult (a palavra parece colar nos filmes do astro), Labirinto: A Magia do Tempo (1986) é uma delirante fantasia juvenil, no estilo de outras criações que só parecem ter existido naquela década, como A Lenda (1985) e Willow: Na Terra da Magia (1988). Trazendo a jovem Jennifer Connelly como a protagonista Sarah, e números musicais extravagantes, o filme é um deleite kitsch para se ver (e crer). Também merecem ser citados o bizarro musical Absolute Beginners (1986), onde só Bowie (se) salva, e Furyo: Em Nome da Honra (1983), do grande cineasta japonês Nagisa Oshima. E pouca gente lembra, mas Bowie também comparece em A Última Tentação de Cristo, o filme de Martin Scorsese que provocou a ira dos católicos e o deslumbre dos cinéfilos. Ali, Bowie é Pilatos, numa rápida participação ao lado de Willem Dafoe – ou Jesus, para os que viram a parada. Em todos, ou quase todos esses filmes, Bowie é a melhor coisa neles, confirmando os auspícios de O Homem que Caiu na Terra, de que o talento dramático de Bowie não era bravata, e que este poderia, se quisesse, ter sido tão grande na arte dramática quanto o foi no rock.

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Desde então, a música voltou a ter a primazia para Bowie. Após a má fase dos anos 80, o cantor voltou com tudo em Outside (1995), um petardo roqueiro/eletrônico/pós-moderno, além de ver sua obra mais trendy do que nunca, com o endosso de artistas como o Nirvana (que gravou “The Man Who Sold the World”, do clássico disco de mesmo nome, no show acústico da MTV), o Nine Inch Nails e Marilyn Manson, todos admiradores desde a adolescência.

Nas duas frentes – música e cinema –, porém, esse disco marca uma considerável diminuição na marcha para Bowie. Pontas aqui e ali – algumas memoráveis, como em Zoolander (2001), mediando o duelo de Ben Stiller e Owen Wilson; outras menos, como em O Grande Truque (2006), onde a aparição de Bowie só é notável por ser… de Bowie (e alguém lembra dele como um dos agentes do FBI em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer? Pois ele está lá) – e um papel substancial: o Andy Warhol mais marcante do cinema, em Basquiat: Traços de uma Vida (1996). Na pele do grande artista pop, mentor do atormentado personagem-título, Bowie produziu o único retrato humano do artista que ele conheceu e admirou: finalmente um Warhol longe da caricatura, dos maneirismos, da perene impressão de futilidade, que se viu em tantos filmes.

Sua música rendeu mais: pela primeira vez, o homem que não olhava para trás, se reinventando sem parar e sem consideração (ainda bem) pelos fãs de cada fase, tomou como inspiração a sua fase setentista – e parece ter ficado feliz em fazê-lo. Seus discos, de Hours… (1999) em diante, são a contínua celebração de suas criações passadas, mostrando a riqueza e variedade que ele foi capaz de conjurar naquela estranha década. Embora abaixo do patamar de, digamos, Scary Monsters ou Diamond Dogs – mas quem seria capaz de rivalizar com eles? –, discos como Heathen (2002) e, principalmente, The Next Day (2013), mostram um cancionista em grande forma, superior à maioria dos roqueiros que apareceu desde então.

Da minha parte, como ouvinte e admirador de Bowie há, pelo menos, 12 anos – desde que Ziggy Stardust (1972) e Low (1977) sacudiram os meus alicerces para sempre –, e sem poder jamais retribuir a riqueza de sons e ideias que continuam a me dar alento, sempre que retorno a seus discos – tenho eles, os discos e os filmes, alguns deles parecendo não acabar nunca, sempre revelando uma nova nuance, um novo matiz (coisas perfeitas e irretocáveis como Low, Hunky Dory e Diamond Dogs – e, por que não, o próprio O Homem que Caiu na Terra?) para reaver o chão que não sinto desde a sua morte. O dia 11 de janeiro de 2016 foi muito triste – mas a sua arte fica, há de ficar, enquanto ele retorna para a sua estrela.