Logo em sua abertura, quando as letras garrafais com o nome de De Palma surgem na tela acompanhada por uma trilha sonora Hitchcockeana, somos apresentadas as primeiras imagens do documentário, através do clássico Um Corpo que Cai (1958), do mestre careca inglês que se tornou objeto de culto e fascínio por parte do homenageado Brian De Palma durante grande parte da sua carreira cinematográfica.

Estamos em um terreno que, enquanto para muitos, representa a prova concreta de Brian ser um mero plagiador de Hitchcock, para seus fãs é a personificação de que estão em um terreno fértil, ao lado de um cineasta criativo e talentoso que sempre soube utilizar a homenagem para fazer releituras interessantes através de novo olhares. “É sempre os momentos de preparação antes do clímax que são interessantes, e é claro que nos meus filmes esses momentos duram uma vida inteira”. Essa é apenas uma fala significativa de tantas outras que permite o documentário De Palma, dirigido pela dupla Noah Baumbach (diretor do aclamado Frances Ha) e Jake Paltrow (irmão da atriz Gwyneth Paltrow) funcione como um aulão de cinema, ou aquele workshop descontraído com um professor que realmente domina seu conteúdo e transmite segurança e conhecimento aos leigos e não leigos em torno do cinema.

Neste contexto, ver Brian expor de forma fraca e aberta sobre sua formação, seu estilo cinematográfico e os diversos “causos” inusitados de bastidores, das alegrias relacionadas as memórias e valores da sua obra hoje no cinema e das frustrações, dificuldades e discussões com produtores e atores, é sem dúvida o ponto alto do documentário. Temos em De Palma um ótimo deleite sobre os aspectos técnicos, tanto para quem se interessa por cinema e tem a curiosidade de saber como se realiza um filme, como aos fãs do diretor que tem a oportunidade de entender os motivos que o ajudaram a construir os vários momentos intensos do seu cinema, como é o caso da famosa cena da escadaria de Os Intocáveis (1987).

Tanto Baumbach quanto Jake Paltrow se propõe a deixar Brian De Palma divagar abertamente sobre sua carreira, sem jamais aparecerem em cena, ou tecerem qualquer questionamento ao diretor. É o famoso formato esquemático de documentário “Cabeça falante”, onde o homenageado fala enquanto trechos de filmes e fotografias passam na tela. Se por um lado é divertido ver De Palma discorrendo sobre sua filmografia com irreverência, sarcasmo e simpatia, sem papas na língua e admitindo sua obsessão pelo cinema de Hitchcock sem qualquer modéstia, inclusive, assumindo que ele foi o mais fiel a cartilha do britânico, pelo outro lado este formato deixa a sensação um tanto quanto preguiçosa pela dupla de diretores de não tornarem a abordagem mais dinâmica ou desafiadora.

Digo isso porque da geração da “Nova Hollywood” que mudou os rumos do cinema na década de 70, De Palma foi um dos nomes mais relevantes, produzindo técnicas estilísticas ousadas para época e abordando temas ousados, que o tornaram o verdadeiro dono da Mise-en-scène do cinema americano, porém, isso também contribuiu para a figura de um artista controverso e polêmico no circuito cinematográfico. A partir de um documentário que celebra a vida e obra de um artista tão relevante, o potencial jamais adentra nestas polêmicas. Na verdade, não temos qualquer confrontação em relação ao diretor e suas posturas de realizador ou pelo menos se esforce em fazer uma análise profunda sobre as temáticas das suas obras. De Palma como documentário apresenta seu homenageado apenas falando, falando e falando, sem ater-se a um olhar crítico sobre ele e o desafie a ir além do convencional

Um exemplo disso é como o filme pouco aprofunda temas relevantes e que se mostram interessantes como a fama dos seus filmes serem misóginos, perversos e violentos contra as mulheres e de quanto eles trazem temáticas da sua vida pessoal – Vestida para Matar (1980) foi influenciado pelos casos extraconjugais de seu pai. Tudo isso é pincelado de forma superficial. Talvez tenha faltado para os entrevistadores um pouco mais de questionamentos.  O próprio De Palma tenta entrar nesses assuntos mais pessoais/artísticos mas parece não ter sido incentivado a aprofundar mais isso pelos realizadores.

Saindo desta esfera, De Palma ganha um bom caldo de entreter o público através das suas deliciosas curiosidades e peculiaridades de bastidores. Uma delas sobre o grande Orson Welles que não conseguia decorar suas falas em O Homem de Duas Vidas (1972) que gerou uma grande dor de cabeça para a produção, o olhar cínico de De Palma em relação ao desgosto com o remake de Carrie, A Estranha, a participação fundamental do amigo Steven Spielberg nos seus maiores sucessos como na sequência final Scarface (1983) e na escolha de Kevin Costner para o papel principal de Os Intocáveis (1987). Cenas marcantes de seus filmes como a da escadaria de Os Intocáveis e Um Tiro na Noite (1981) ganham histórias relevantes para sua construção. A lamentar neste aspecto de análise de suas obras é o fato que os filmes mais malhados do diretor ganham pouco destaque ou um olhar crítico preciso –  a sensação é que de Missão Impossível (1996) para frente, o próprio documentário se mostra apressado em discorrer sobre os filmes mais recentes do diretor.

Mesmo indiretamente, De Palma apresenta duas questões pertinentes. A primeira é uma constatação crítica: como a cena independente da época de 70 era marcada pelo estilo experimental e anárquico, onde os diretores tinham liberdade artística dentro dos grandes estúdios para expor seus pontos de vistas – A visão De Palma era um olhar feroz da Guerra do Vietnã – e hoje esta cena indie não há mais espaço para enfrentamentos cinematográficos; A segunda é uma dica para jovens cineasta e entusiastas da sétima arte: a amizade que rolava na Nova Hollywood entre Coppola, Spielberg, Lucas e De Palma. Eles discutiam seus filmes, trocavam ideias e analisavam suas particularidades. Era uma época diferenciada e como o próprio homenageado relata em um certo momento da produção “Quando o meu roteirista era demitido, eu ia junto. Era uma época bem diferente de hoje”. Em tempos que a cena cinematográfica nacional e amazônica se mostra cada vez menos unida, De Palma mostra que um grupo de amigos, coeso e unido, faz a força e total diferença na definição de cinema. É uma lição muito bem dada, daquelas para se refletir.

No geral, De Palma é um documentário como um ótimo fan service para os fãs do diretor ou para os que curtem cinema, ainda que não ofereça uma análise fílmica que um maestro como De Palma mereça. É nítido que o carisma e os diversos causos contados por ele ajudam a suprimir o conservadorismo do documentário. Quem sabe futuramente temos um documentário que faça jus a este grande maestro do cinema.