A Escola Internacional de San Antonio de Los Baños, em Cuba, surgiu no meu imaginário há alguns anos, a partir da ida do Aldemar Matias (“Parente” e “La Arrancada”) e Zeudi Souza (“Perdido” e “No Rio das Borboletas”) para lá. Lembro do quanto falavam empolgados sobre o intercâmbio com alunos de outros países, da qualidade da formação, do quanto isto representou em suas carreiras.

Posteriormente algumas oportunidades de trabalho me proporcionaram conhecer outros profissionais formados na Escola. Mais do que apenas competentes nas suas funções, me interessa muito notar a maneira colaborativa como pensam a produção de cinema, como tem consciência sobre que papel nosso trabalho cumpre na sociedade, onde pode chegar e como podemos nos especializar em uma linguagem que nos seja próxima, que tenha nossa interpretação dos fatos, de terceiro mundo, sul-americana. Aí é que está o ouro: na capacidade de olhar para si, para seus semelhantes, e entender que, a partir disso, podemos fazer um audiovisual único.

Através de um projeto aprovado em um edital do município, tive a oportunidade de realizar um taller de duas semanas nesta escola. Chama-se ‘Narrativas Breves’, e tem como objetivo ensinar técnicas de construções narrativas para histórias de curta duração. Foi ministrado pelo roteirista espanhol Enric Rufas.

Cursos dessa duração nunca irão abranger todas as carências de seus alunos, claro, mas ainda assim a expectativa era alta.

E como toda viagem, principalmente as internacionais, faz com que mudemos coisas em nós, afinal, o universo diferente que acabamos de conhecer expande a nossa consciência, imagina uma para Cuba. O lugar que todo mundo adora falar a respeito, para o bem e para o mal, que está no imaginário romântico coletivo. Um deleite para os colegas esquerdistas do Face, e um quase gozo para os “colegas” direitistas, eleitores de Bolsonaro, etc..

Por mais que tenha sido por pouco tempo, é bem difícil não se contaminar por essa experiência. Um daqueles momentos que leva você a reflexões que não seriam possíveis no conforto do lar, ou dos mesmos lugares de sempre, das mesmas pessoas, discussões. Tudo é muito diferente do que o que está no quintal.

O clima era de aproveitar esse curto período pra trocar ideias o máximo que fosse possível. E isso causou o primeiro impacto: o idioma.


Espanhol intermediário

Não sei você, mas eu já preenchi meu curriculum dizendo que tenho inglês fluente, e espanhol intermediário. O primeiro é verdade, apesar dos pesares, mas o segundo…

Antes de viajar fiz planos de maratona de Almodóvar, Cuarón, Trapero, Buñuel, e outros títulos falados em espanhol para dar uma treinada. A rotina, porém, me fez ver apenas Roma. (Que aliás, não empolgou muito as pessoas com quem conversei lá pela escola, de professores a alunos. Incomodaram-se com a passividade com a qual a protagonista aceita seu destino, e a sua “inferioridade” perante seus patrões. Enfim, retornando ao texto).

Falei com outros colegas que já foram pra lá, perguntei se tiveram dificuldade no idioma, me falaram que, a princípio, tiveram alguma, mas que depois de pouco tempo a comunicação fluía sem muitos percalços. Eu fui juvenil e acreditei. E me vi em vários momentos constrangedores.

Ouvir as pessoas falando era até possível de compreender se estas pronunciassem devagar as palavras (o que, é claro, não acontecia sempre), mas falar era aterrorizante. Começava a frase no espanhol e terminava no inglês, com gestos e pantomima, além de um olhar meio desesperado, meio pedinte, pra saber se o que dizia fazia algum sentido. E não fazia muito, normalmente.

Meu cérebro me traía, começava confiante, e terminava com frases inacabadas; o vocabulário me faltava. Percebi o quanto subestimei as “diferenças” entre português e espanhol e os seus muitos falsos cognatos.

Passei uns dois dias bem calado, com os olhos meio arregalados achando que isso aguçaria meus ouvidos, e me pus a ouvir, na cara de pau, as conversas alheias. Acabou ajudando: com o passar do tempo fui perdendo a vergonha, assumindo a ideia de que o importante é se comunicar.

E a EICTV é um lugar com pessoas abertas ao diálogo, dos colegas de turma, alunos da graduação e maestria, aos professores, muitos já consagrados. É um lugar que respira cinema, mas não apenas isso: um filme pode seguir infinitos caminhos para chegar aos seus objetivos, pois se estamos falando de arte, falamos de assuntos amplos, podendo ser técnicos, mas também existencialistas, sociais, democráticos, comportamentais, a lista vai muito longe.

Conversar sobre cinema com pessoas da Colômbia, Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai, República Dominicana, Espanha, Itália, perguntar o que pensam do nosso cinema, ouvir suas opiniões sobre os filmes de seus países (falei empolgado sobre O Abraço da Serpente para uma aluna colombiana que me respondeu com pouco caso, disse que era um filme colombiano para estrangeiro ver), ser confrontado por gostos, opiniões tão diversas.

Aprender técnicas de enquadramento, construção dramatúrgica, montagem, etc. é algo que permanece sendo fundamental, é a base, o mínimo. Mas, em uma formação como esta, é possível enxergar o quanto é ainda mais importante saber onde você está produzindo, qual o seu tema, o que ele abrange, com quem dialoga, para que vai servir.

O curso em si, as aulas, não fugiram muito de apresentar diferentes técnicas de construção narrativa, construção de personagens, diálogo, etc.. Isso você aprende em muitos cursos por aí. Fazer bons filmes não está ligado a isso como se fosse uma regra.

Logo essa experiência adquire muito facilmente um papel maior do que um curso técnico de duas semanas. É uma oportunidade de constatar que, por mais que tenhamos que ser íntegros às escolas, estilos que nos despertaram o interesse em empreender uma carreira no cinema, existem outras opções que nos fazem mudar um pouco a rota.

É evidente que a EICTV cumpriu papel muito diferente para mim do que para o Aldemar, que realmente vivenciou tudo aquilo de maneira mais ampla. Mas, sinto que entendi o espírito e às motivações que te fazem chegar nas inquietações certas. Agora “só” falta todo o caminho a percorrer.

Enfim, os filmes

Se as aulas em si não foram o que de mais marcante ficou dessa experiência, os filmes assistidos e debatidos posteriormente ficaram.

Aliás, como é bom ver um filme e logo, na sequência, com ele ainda rodando incompreendido na cabeça, debatê-lo! Muitas vezes a conversa pós-filme agrega muito mais valor a obra.

O conceito por trás das sessões era a de sempre trazer, todos os dias, um filme com uma estrutura narrativa diferente da outra, para que nosso olhar mantenha-se disponível para diferentes propostas de ritmo, montagem, decupagem e roteiro, é claro.

O mais diferentão de todos é um que estava na lista para assistir, mas que sendo 100% honesto, tava lá no rabo da fila. Post Tenebras Lux, de Carlos Reygadas, vencedor da Palma de Ouro de Melhor Direção do Festival de Cannes de 2012. Fiquei pensando direto: se eu fosse escalado pra fazer crítica desse filme, tava ferrado. A proposta não-linear que, às vezes, possui alguma continuidade narrativa, e depois parece apenas um exercício de observação que resvala numa sensorialidade aqui e ali, me pareceu muito enigmática. É o que podemos chamar de filme difícil. O mais estranho de tudo é que gostei do filme, mesmo tendo passado batido diversos “significados”, seja lá o que isso quer dizer numa proposta como essa. Os primeiros 15 minutos são hipnotizantes, sensacionais.

Dois filmes escritos pelo meu professor, Enric Rufas, ambos dirigidos por Jaime Rosales, e os dois participantes do Festival de Cannes nos seus respectivos anos. Las Horas Del Dia e La Soledad (ambos não possuem tradução para o português). Exemplos de filmes que possuem “o tempo da vida”. Situações cotidianas seguem-se sem nenhum tipo de pressa ou indicação de que irão chegar a algum lugar. Até que determinados acontecimentos extraordinários chegam e você pensa que isso modificará a história e… não, tudo continua como antes, só que com essas bombas no caminho. Vejo valor, mas tenho cada vez menos argumentos pra defender filmes que considero chatos. Filme chato é aquele seu tio caxias, certinho, que você sabe que tem razão nas coisas que diz, mas que mesmo assim você não sente muita vontade de encontrá-lo no almoço da família. Estou certo de que estes são dois filmes não irei rever, e isso não quer dizer que não gostei deles.

O israelita Ajami, de Scandar Copti e Yaron Shani, finalista da categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2010, mostrou-se disparado como o mais divertido de todos. Uma trama dividida em quatro partes contando quatro histórias numa comunidade em Tel Aviv repletas de mortes, crimes que se entrelaçam aqui e ali, com acontecimentos de uma interferindo nas outras. Bom, é claro que filmes como Pulp Fiction, Magnólia, Amores Brutos dentre outros já se utilizaram desses artifícios narrativos, logo não se trata de uma proposta tão inovadora. Mas a montagem e o roteiro são espertos, e os muitos detalhes que contam as histórias são apresentados com naturalidade e fluidez, fazendo com que pareça simples a tarefa de manter o mesmo nível de interesse contando quatro histórias diferentes em duas horas. Sendo sincero, acho melhor que O Segredo dos Seus Olhos, o vencedor da estatueta na premiação americana.

Havia um filme que claramente despertava uma simpatia extra do Enric: Leolo, de Jean-Claude Lauzon. História de um garoto, escritor desde muito pequeno, que mistura sua visão de mundo e poesia na narrativa, criando uma trama bastante inquieta, com soluções de ritmo e montagem bastante diferentes do comum. A trama que vai e volta, mas que, ao mesmo tempo, não caminha em círculos, tem uma direção de arte impecável, trama engenhosa, mas não me pareceu muito impactante nos temas que propõe. O professor dizia muito sobre a influência deste filme, do quanto ousou em estrutura. E é verdade, talvez eu ainda não esteja pronto.

Não conhecia o projeto Ten Minutes Older, iniciativa que reúne cineastas de diversas nacionalidades para que estes realizem curtas-metragens de 10 minutos sobre o tema que quiserem. Este projeto está dividido em duas partes, a primeira, “O Trompete”, a segunda, “O Selo”. Participam nomes como Wim Wenders, Claire Denis, Jean-Luc Godard, Werner Herzog, Jim Jarmusch, Spike Lee, Aki Kaurismaki, Bernardo Bertolucci, Mike Figgis, dentre outros. Destaco o curta Lifetime, de Victor Erice. Uma construção audiovisual que a partir do nascimento de um bebê cria uma relação de contraste com a morte, o tempo, as relações humanas, através de uma decupagem poética. Cinema não consegue ser muito melhor que isso.

Pude me infiltrar em uma aula de alunos de edição, e vi outro título que estava no fim da fila para assistir. Vestígios do Dia, de James Ivory. Um exemplo de narrativa cíclica, trazida por conta da característica de seu personagem principal, alguém que obriga a trama a caminhar em círculos, andando para frente para logo depois retroceder, sendo este o jogo proposto. Proposta arriscada, mas que aqui se sai brilhantemente graças as duas atuações principais, de Emma Thompson, e principalmente do inspirado Anthony Hopkins, em uma performance que não deve nada para sua composição de Hannibal Lecter.

Há outros filmes pela metade, os que revi cenas, os que revisitei fora das aulas. Fazia tempo que não me colocava na situação de ver três, quatro filmes por dia, ver filme no tempo livre, antes de dormir, depois do almoço, em qualquer brecha de tempo. Nesse momento, me senti muito grato pelo acesso difícil a internet, por estar sem televisão, pois resgatou minha compreensão de que eu sou apaixonado por isso, que ainda tem muita coisa pra assistir, muito filme elementar na lista imaginária que não para de aumentar nunca. Ainda bem.

Fiquei pensando muito no quanto essa oportunidade seria genial para outros colegas realizadores daqui de Manaus. Especulo que seria aquele tipo de acontecimento que modifica algo dentro do realizador, que o faz encarar a carreira de maneira diferente, o obriga a ter uma dimensão mais realista dos seus limites e valores como artista e cidadão.

Mas isso já sou eu viajando. O caminho é o inverso, desde a nomeação do novo Secretário do Audiovisual à retirada dos patrocínios da Petrobrás a cinema e teatro, indícios não faltam. Oportunidades como essa tendem a minguar. Ainda bem que deu tempo de ir antes dos contratos, que ainda garantem alguma racionalidade, expirarem.

Todavia o conhecimento fica, e isso não dá para tirar, ainda que tentem.

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Cuba, eu fui