No Dia Mundial do Rock, o Cine Set traz um especial sobre o melhor filme já feito no gênero: “Gimme Shelter”, dos documentaristas Albert e David Maysles e Charlotte Zwerin, que registrou o trágico show dos Rolling Stones no festival de Altamont, na Califórnia, em 1969, onde um fã da banda acabou assassinado. O texto foi dividido em duas partes, para facilitar a leitura: a primeira trata da história do festival e explica sua importância para a cultura popular. A segunda analisa o filme, suas qualidades artísticas e técnicas, e termina com um pequeno resumo da trajetória dos envolvidos após a produção. Boa leitura!

1ª. Parte

A HISTÓRIA

– Antes de Altamont: rock, revolução, esperança

O rock, como música e expressão cultural, já é um senhor venerável. Suas rugas acumulam décadas de revolta e ansiedade juvenil, e sua voz gritou mais alto do que qualquer outra para derrubar barreiras de classe, sexo e ideologia na segunda metade do século XX. Foi o rock, afinal, que sonorizou a marcha pelos direitos civis nos Estados Unidos de 1964; a cisão violenta entre a juventude brasileira e o regime militar, em 1968; e a Revolução de Veludo, que, em 1989, libertou a República Tcheca do jugo soviético.

Hoje em dia, o rock, como boa parte da música mais original e inconformista do século passado, tornou-se lugar comum, domesticado e transformado em “produto” por executivos sem ousadia e artistas sem imaginação. No final dos anos 1960, porém, o estilo chegava ao ápice em alcance e influência, e parecia formar a trilha sonora para uma nova sociedade, mais livre, permissiva e tolerante. Os elementos vinham cozinhando há algum tempo: a chegada da pílula anticoncepcional, Elvis, os Beatles, a abertura às filosofias orientais, a popularização das drogas psicodélicas. Tudo veio a termo com a aparição do movimento hippie, formado por jovens da Costa Oeste dos Estados Unidos, que, escolados em arte contemporânea e abertos a tudo o que fosse novo e afirmativo, em termos artísticos e comportamentais, exerceriam uma influência decisiva sobre a juventude planetária, sedenta de mudança e renovação. Para essas moças e rapazes, o som engajado, festivo e comunitário do rock’n’roll era a música ideal, a trilha sonora da revolução.

A afinidade de sons e ideias logo se concretizaria em eventos que iriam marcar de forma definitiva o período: os festivais. Monterey, em 1967, foi o primeiro: uma grande celebração, sem fins lucrativos, trazendo a nata do som novíssimo da época, gente que logo deixaria pegadas fundamentais na trajetória do rock, bem como ajudaria a divulgar seus ideais revolucionários: Jimi Hendrix, Big Brother and the Holding Company, Simon & Garfunkel, Otis Redding, The Who, Ravi Shankar. O sucesso da empreitada afirmou a validade dessa nova cultura – intensa, inquieta, experimental e fraterna. Os discos de rock lançados nesse período documentam o desejo de experimentação, a quebra de barreiras entre os diferentes estilos musicais: Surrealistic Pillow (Jefferson Airplane), Forever Changes (Love), Tommy (The Who), Are You Experienced? (Jimi Hendrix) e o maior de todos, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Beatles). O apogeu dessa fase do rock, dessa nova sociedade moldada por ideais coletivos de paz, amor e comunhão universal, seria simbolizado por um evento ocorrido em agosto de 1969, numa propriedade rural em Woodstock, estado de Nova York.

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Em tese, o festival de Woodstock deveria ser uma empreitada estritamente capitalista: o público compraria ingressos, os artistas fariam os shows, espaço e estrutura seriam bem definidos. Na prática, porém, o planejamento provou ser um desastre. A expectativa dos organizadores, que era de no máximo 50 mil espectadores, seria logo quebrada pela chegada de nada menos do que 400 mil participantes, vindos de todos os cantos do país. Centenas de voluntários se engajaram para oferecer comida, abrigo e atendimento médico aos forasteiros, durante os três dias do festival. Os portões foram inteiramente abertos ao público, numa decisão sem precedentes que ilustraria bem o espírito do acontecimento. A música? Jimi Hendrix, Janis Joplin, Sly & the Family Stone, Joe Cocker, The Who, Santana, Crosby, Stills and Nash, Richie Havens e vários outros performers icônicos, num total de 32 atrações. Paz, amor, espírito comunitário, sexo sem traumas, alucinógenos, rock‘n’roll: eis os ingredientes para tornar o sonho realidade.

O fim do sonho: o festival de Altamont

O triunfo ideológico de Woodstock parecia indicar que, de fato, mudanças profundas estavam em curso na sociedade americana (e, por extensão, no Ocidente). Novos megafestivais eram organizados nos Estados Unidos e na Inglaterra. O musical Hair (1967) celebrava o ideal hippie e escandalizava ao trazer nudez e drogas para o teatro convencional. O cinema também idealizava os rebeldes e foras-da-lei, em filmes como Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), de Arthur Penn, e Easy Rider – Sem Destino (1969), de Dennis Hopper.

Na verdade, a lua-de-mel estava perto do fim, que chegou muito mais cedo do que qualquer um poderia imaginar. Os Beatles tinham se separado; Bob Dylan vivia em reclusão; Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison (The Doors) logo mergulhariam na espiral de drogas e álcool que os mataria, um por um, pelo próximo um ano e meio. E a famosa comuna hippie de Haight-Ashbury, bairro de San Francisco que havia sido símbolo do movimento em 67, há muito estava desfeita por episódios de overdose, estupros e violência.

Foi nesse contexto de decadência que apareceu o festival de Altamont. Idealizado pelos Rolling Stones, que atravessavam uma fase de renascimento artístico após a morte de seu membro fundador, o guitarrista Brian Jones, o festival deveria marcar o encerramento da turnê americana do grupo, em dezembro de 1969 (ou seja, meros quatro depois de Woodstock, que aconteceu em agosto). A princípio, a idéia era fazer um grande concerto gratuito na ponte Golden Gate, em San Francisco, com os principais nomes da cena local, mas problemas logísticos (a cidade não queria um novo Woodstock) levaram a festa para o autódromo de Altamont, num local mais afastado. Os problemas ficaram evidentes logo de cara: filas quilométricas de carros ocupavam a estrada que dava acesso ao evento; quantidades homéricas de bebida e drogas eram trazidas pela multidão (sem exagero: o público total foi de 300 mil pessoas); fãs tentavam invadir o palco e eram violentamente reprimidos pela segurança – composta pela gangue de motociclistas e arruaceiros profissionais Hell’s Angels. Quando os Rolling Stones deram início ao último show do festival, com bastante atraso, o cenário era de caos. O palco, muito próximo do chão, era invadido o tempo todo. O público, enfurecido e turbinado por drogas psicodélicas e anfetaminas, brigava entre si, hostilizava os músicos e os seguranças. Os próprios Hell’s Angels, cujo pagamento pelo trabalho foi simplesmente beber toda a cerveja que quisessem, incitavam abertamente a agressividade da plateia, com xingamentos e brigas.

A situação, que já havia feito muitas das bandas convidadas desistirem de tocar, chegou ao ápice com a confusão envolvendo o jovem Meredith Hunter, de 18 anos. Entupido de drogas e fora de si, Hunter tentou invadir o palco no show dos Stones, mas foi repelido com violência pelos seguranças. Minutos depois, o jovem retornou trazendo uma pistola, que apontou para o palco – até hoje se especula quem seria o alvo, se os Angels ou os Stones. O fato é que Alan Passaro, um dos membros da gangue, o desarmou e esfaqueou até a morte. Jagger e companhia, percebendo que a situação havia ficado completamente fora de controle, terminaram o show e foram embora o mais rápido possível. Ao fim de tudo, outras três mortes (acidentais) e centenas de furtos foram contabilizadas pela organização.

Com a tragédia, Altamont mostrou que o sonho hippie, sem uma base moral e social firme, havia apenas degenerado em hedonismo e inconsequência. O rock, esvaziado de seu poder transformador, caiu no vazio e na repetição. Somente o punk, uma década mais tarde, devolveria a energia criativa e o fervor revolucionário à música. Mas nada mais seria como antes.

2ª Parte

O FILME

Sem glamour: imagens brutais, edição inovadora

Gimme Shelter, o documentário que resultaria das filmagens em Altamont, começou como um projeto completamente diferente. Os irmãos Maysles, pioneiros do cinema direto americano, movimento que havia inovado os documentários ao abolir narração, entrevistas ou qualquer outro recurso que não a imagem “pura”, já haviam registrado com sucesso a primeira turnê americana dos Beatles. A proposta inicial era fazer algo igual com os Stones: um diário das viagens e afazeres da banda na América, e os pontos altos dos shows. O filme até começa desse jeito: uma apresentação eletrizante de “Jumping Jack Flash” no Madison Square Garden, do show que depois viraria disco (Get Yer Ya-Ya’s Out!, de 1970), abre os trabalhos. Entrevistas engraçadinhas, sessões de escuta de canções recém-gravadas (podemos ver a empolgação de Keith Richards com “Wild Horses”), fotos e brincadeirinhas no hotel se sucedem. Nada muito diferente de A Hard Day’s Night (1964) ou de um episódio dos Monkees.

Quem chegou até aqui e não gostou do fato de eu estar contando a história do festival, narrando os acontecimentos do filme, etc., pode ficar tranquilo. Gimme Shelter não tem spoilers: o filme expõe os fatos de cara. Numa brilhante decisão dos diretores, o filme alterna entre os acontecimentos em Altamont e a reação da banda. Jagger e o baterista Charlie Watts são convidados a acompanhar a montagem do filme, e alguém põe um rádio com as notícias do dia seguinte ao festival pra eles escutarem. Jagger se mostra bastante contrariado com o depoimento do líder dos Angels, Sonny Barger. Já Watts está triste e abatido. Ao longo de Gimme Shelter, conforme os acontecimentos se desenrolam, acompanhamos por mais vezes as reações dos dois.

Gimme Shelter não é só um grande documentário, mas também um dos grandes filmes do cinema, graças à sua edição fantástica. O trio de diretores abandona por completo a montagem linear, que apresenta os fatos em sucessão cronológica. Imagens do concerto em Altamont são embaralhadas para montar uma progressão da alegria ao caos. Assim, o fim do show dos Stones, relativamente calmo, aparece bem no meio do filme, para voltar mais tarde acrescido da carga devastadora dos acontecimentos precedentes. Um show de Tina Turner no concerto do Madison, que marca a transição do começo alegrinho para o espetáculo de decadência no restante do filme, aparece antes dos shows dos Flying Burrito Brothers e do Jefferson Airplane, muito mais tensos. O planejamento do festival é retratado em cenas curtas e incisivas: Melvin Belli, o pomposo advogado da banda, transborda desenvoltura ao contornar os problemas logísticos trazidos pelas autoridades californianas. Mais tarde, com o caos instalado no trânsito e o público frustrado e impaciente, ele se cala.

Cenas assustadoras se sucedem: o helicóptero dos Stones desembarca, e Mick, que sai na frente para cumprimentar fãs e jornalistas, leva um soco de um espectador enfurecido; os organizadores precisam pedir sucessivas vezes para o público descer das torres de iluminação, que não oferecem nenhuma segurança – e, mesmo assim, eles a escalam; um desfile de homens e mulheres completamente drogados e desorientados ronda o palco; Grace Slick, do Jefferson Airplane, discute com um Angel depois que um deles dá um soco no cantor Marty Balin; e por aí vai. Toda a energia despertada pelo rock, e como ela pode ser usada da forma mais destrutiva, aparece de forma crua e desglamourizada aqui.

A equipe técnica, da qual fazia parte um jovem George Lucas (!), também contribui com lances de intuição estupendos: no maior deles, pouco antes do assassinato, uma câmera deixa Jagger de lado e se detém num Angel anônimo, cujo rosto se contorce de raiva diante da confusão. Trata-se de uma das imagens reais mais sinistras já registradas na tela grande: um verdadeiro furor de raiva e frustração toma conta do rosto do homem, que parece estar prestes a explodir, até que ele é afastado por um colega de gangue. Lição importantíssima para cineastas pós-MTV e Michael Bay: às vezes a decisão mais ousada e impactante é justamente não cortar, deixando a cena acumular tensão e suspense. E chega, enfim, a infame da sequência do assassinato, tão rápida que não dá pra ver nada. Ou quase: se você estava atento, viu que um rapaz negro, usando um terno verde, é afastado da multidão por um homem vestindo a jaqueta dos Angels. Na sala de edição, a cena é repetida para Jagger em câmera lenta, e então percebemos: aquele rapaz carregava uma arma. E, ao ser empurrado para longe, os socos que o Angel parecia dar na verdade eram facadas.

O filme mostra o corpo do rapaz, já morto, sendo levado em uma maca, coberto por um lençol. Perto dali, uma moça que testemunhou tudo e chora convulsivamente, é consolada por um amigo. A falência do ideal hippie é tragicamente exposta. A canção final (“Street Fighting Man”, ironia amarga) aparece de novo, agora sob o impacto de tudo o que aconteceu antes. A banda termina o show às pressas e foge para o helicóptero, abandonando a confusão. No final, em imagens de extraordinário significado, vemos os jovens, agora desertados de seus ídolos, descendo as colinas na direção da noite escura. A câmera procura um sinal de emoção no rosto atordoado de Mick Jagger, que apenas se levanta e deixa a sala: em vão. Contra um sol gigantesco, e sob os acordes apocalípticos de “Gimme Shelter”, a canção que dá título ao filme, os jovens se vão, uma massa confusa, perdida na derrota dos ideais para o cinismo.

– Post-mortem: a importância de Gimme Shelter

A força das imagens e a brilhante montagem final deram a Gimme Shelter o status de cult desde o seu lançamento. Capítulo final de um momento importantíssimo na história do século passado, o filme transcende, por seu sentido simbólico, a mera definição de “registro” ou “documentário” de um show: trata-se de um grande, de um sombrio drama humano, o equivalente, para o cinema de não-ficção, a Apocalypse Now, o réquiem sobre a Guerra do Vietnã lançado por Francis Ford Coppola em 1979.

O filme foi exibido no Festival de Cannes de 1971, fora de competição. Os irmãos Maysles, já celebrados como mestres do documentário, seguiriam na linha de frente do cinema direto pelas décadas seguintes, registrando, entre outros, o pianista clássico Vladimir Horowitz e o trompetista de jazz Wynton Marsalis. Havia planos para um novo documentário sobre os Stones, mas eles acabaram se transformando no projeto Shine a Light, de Martin Scorsese, lançado em 2008.

A banda, por sua vez, nunca mais se permitiu flagrar em condições tão adversas ou numa posição tão vulnerável. Mick Jagger, que passou a comandar com mão de ferro os lançamentos relacionados aos Stones, conseguiu barrar por décadas o lançamento de Cocksucker Blues, documentário de 1972 que registra a turnê americana daquele ano, e é farto em cenas de sexo e consumo de drogas. Até em Shine a Light, o documentário de Martin Scorsese feito para celebrar a longa trajetória do grupo, Jagger impôs sua vontade e saiu um filme asséptico, extraordinariamente filmado, mas nada revelador.

Gimme Shelter ganhou edição brasileira, e pode ser encontrado com facilidade em sites de grandes livrarias ou revendas online. Para quem ficou impaciente, há uma versão no Youtube com qualidade de imagem razoável (o próprio original, com sua fotografia difusa e cores desbotadas, não é lá grande coisa). Essa versão não possui legendas, mas os diálogos são poucos e irrelevantes, enquanto as imagens continuam poderosas e viscerais. O cinema direto continuou a produzir ótimos documentários sobre rock, como as versões de D. A. Pennebaker para shows de Jimi Hendrix, David Bowie e Depeche Mode, além do marco do gênero, Don’t Look Back, estrelando Bob Dylan. Mas, para a mesma confluência de significado histórico e valor cultural, além dos filmes sobre os grandes festivais (Monterey Pop, lançado em 1968, e Woodstock, em 1970), os candidatos mais prováveis são mesmo The Last Waltz – O Último Concerto de Rock, sobre o show de despedida da The Band, e No Direction Home, estudo em duas partes sobre a metamorfose de Bob Dylan de cantor folk em astro do rock. Ambos são dirigidos pelo mesmo Martin Scorsese, e também são fáceis de encontrar nas livrarias. Nesse 13 de julho, portanto, fica um ótimo programa pros aficcionados em rock. Não deixe de conferir.