A década de 1960 foi a década “psicodélica”, na qual as pessoas usavam LSD, heroína, cocaína e outras substâncias para “expandir a mente”, e na qual a contracultura floresceu dizendo aos “quadrados” para abrirem a cabeça. Foi também a época na qual a maioria dos personagens mais famosos e icônicos dos quadrinhos da Marvel foram criados, incluindo o Doutor Estranho. Stan Lee e Steve Ditko, os criadores dele, trabalhavam dentro da verdadeira linha de montagem da editora concebendo ideias e personagens a torto e a direito e, atentos ao que estava ao seu redor, conceberam um super-herói mágico capaz de cair nas graças do público viajante da época. Afinal, algumas aventuras do Doutor Estranho eram realmente “muito loucas, bicho!”.

Captar esse clima lisérgico e maluco do personagem, e um pouco do da época na qual ele nasceu, é a maior qualidade do filme Doutor Estranho, a mais nova produção do Marvel Studios no cinema. Verdade seja dita, em termos de conteúdo o longa não inova muito sobre a já conhecida “fórmula” do estúdio, especialmente no tocante aos filmes de origem dos heróis. De novo, é a história de um cara arrogante que ganha um poder e aprende a ser humilde, ou no mínimo menos arrogante – é o que deu certo em Homem de Ferro (2008) e Thor (2011). Afinal, num momento chave da trama, o protagonista ouve a frase “Não é sobre você”, o que resume a essência da jornada do protagonista. Porém, em termos de forma, a magia abre possibilidades visuais e narrativas que são aproveitadas pelo diretor Scott Derrickson, antes conhecido pelos seus filmes de terror, como O Exorcismo de Emily Rose (2005).

Mas não há nenhum traço de terror no longa da Marvel, embora até pudesse haver. O único terror vem do medo de conviver com um sujeito egocêntrico como o cara do início da história. O Doutor Estranho do título é o cirurgião Stephen Strange, vivido por Benedict Cumberbatch – e sim, é esse mesmo o nome do personagem. Strange é um médico de talento e competência comparáveis à sua arrogância, ou seja, é muito talentoso e competente. Um dia, sofre um acidente que provoca graves danos aos nervos das suas mãos. Desesperado em busca de uma cura para o seu problema, ele acaba viajando ao Nepal (!), onde conhece o monastério de Kamar-Taj, comandado pela misteriosa Anciã (Tilda Swinton), que o iniciará nos caminhos da magia.

Doutor Estranho

Se tudo isso parece meio absurdo, é porque é. E felizmente, os realizadores de Doutor Estranho levam a história a sério apenas o suficiente para manter as coisas caminhando. Há vários momentos de humor espalhados pelo filme, especialmente nesse primeiro ato, e como é de praxe nesse tipo de produção, o protagonista logo enfrentará o antagonista, um sujeito sombrio chamado Kaecillius, interpretado por Mads Mikkelsen.

É o elenco que segura o filme. Cumberbatch é carismático e “estranho” na medida certa e carrega o filme de maneira fácil e espontânea, sem cair na tentação de repetir traços do seu conhecido Sherlock Holmes. Swinton, que já parece de outro mundo, faz um ótimo Yoda, apesar de toda a polêmica em torno da sua escalação para um personagem que, em teoria, deveria ser asiático – mas como a atriz automaticamente melhora tudo com que se envolve, então rapidamente ignoramos a polêmica. Mikkelsen faz mais um vilão unidimensional, marca registrada da Marvel, mas se mostra interessado, apesar de pouco exigido. Chiwetel Ejiofor e Rachel McAdams emprestam um pouco de seriedade às coisas e Benedict Wong é divertido. Aliás, todos parecem estar se divertindo muito com o filme – a verdadeira magia Marvel sempre deveu muito à escalação do elenco, e aqui não é diferente.

O roteiro formulaico até permite que o público consiga adivinhar algumas viradas na trama. No entanto, subitamente o filme engata uma marcha mais forte e segue acelerado até o final – aparentemente Derrickson e seus roteiristas se mostram entediados com a fórmula e resolvem sacudir as coisas usando a ferramenta da magia, e depois de uns 40, 45 minutos iniciais interessantes, mas nada surpreendentes, o longa de repente se torna criativo e divertido. Os duelos de magia envolvem dimensões paralelas, cidades virando de ponta-cabeça e cenas que não ficariam deslocadas num filme de animação. Os efeitos visuais são impressionantes e criativos: em dados momentos o longa brinca ao mostrar imagens semelhantes a arco-íris e caleidoscópios nas dimensões visualizadas por Strange. E a trilha sonora criativa de Michael Giacchino muitas vezes se sobressai e amplia a diversão, fazendo uso de órgãos e efeitos que remetem à era psicodélica na qual o Doutor nasceu. Até uma canção do Pink Floyd é ouvida numa cena…

Cena de Doutor Estranho

O rearranjo da realidade, a forma inteligente como o conflito central da história é resolvido e as piadas que pipocam por todo o filme vão de encontro à ideia de que “filmes de super-heróis são melhores quando são sérios”. Nesse sentido, Doutor Estranho é até corajoso: não chega a subverter suas formulas, e nem tenta fazê-lo realmente, mas garante a diversão do público ao constatar que, sim, a grande maioria dos conceitos por trás das histórias de super-heróis são meio bobos, incluindo um sobre um mago superpoderoso criado naquele contexto dos anos 1960, do qual é possível rir um pouco hoje. A verdadeira magia de Doutor Estranho, além do seu elenco, vem da capacidade de abraçar a própria (e deliciosa) bobagem, e de quebra nos fazendo rir junto com os personagens e as situações, e não deles. É um filme que nos faz gostar de um herói cuja capa faz grande parte do trabalho por ele, que possui um cavanhaque fininho e um amuleto ligeiramente hippie, e ao final saímos satisfeitos por termos presenciado umas coisas “muito loucas”. Realmente, ainda vivemos sob o impacto dos anos 1960, especialmente quando se trata da cultura pop.