Rever Sem Destino em 2018 é uma experiência, no mínimo, curiosa: trata-se de um filme muito da sua época, ou seja, é datado; mas por outro lado há uma atemporalidade no centro da história que o torna cativante, mesmo quase 50 anos depois do lançamento. É um filme que só poderia ter sido concebido naquela época, o final dos conturbados anos 1960, e por vários motivos e pela benção dos deuses do cinema, ele acabou por revitalizar a indústria de Hollywood e apontar novos caminhos para o cinema norte-americano.

Nada mal para um filme que começou a ser rodado sem um roteiro, com um orçamento de minguados 400 mil dólares, com pessoas das locações reais sendo recrutadas para interpretar papéis, e feito enquanto o diretor, astros e vários membros da equipe técnica estavam sob a influência das mais variadas substâncias…

A história é um fiapo: dois motoqueiros, Wyatt (também conhecido como Capitão América) e Billy, interpretados por Peter Fonda e Dennis Hopper, ganham uma bolada vendendo cocaína e largam tudo, embarcando numa viagem até Nova Orleans para ver o Mardi Gras, o carnaval da cidade. Com o tempo, Sem Destino acabou virando o protótipo de road movie, o filme de estrada, pois está tudo nele: as belas paisagens, a narrativa episódica e sempre em movimento, a sensação de que a jornada é mais importante do que o destino final.

Hopper é o diretor, mas só ele não explica o resultado final, um claro exemplo do cinema como arte colaborativa. Afinal, as contribuições de membros-chave da equipe também fizeram de Sem Destino o que ele foi e ainda é: o produtor-executivo Bert Schneider viabilizou a jornada, o diretor de fotografia Laszlo Kovács era basicamente o único com a cabeça “desanuviada” durante as filmagens, e o montador Donn Cambern conseguiu dar forma às viagens de Hopper e companhia, reduzindo as três delirantes horas da versão inicial do diretor para compactos e poderosos 95 minutos. Cambern também fez uso daqueles cortes rápidos, quase como flashes, que causaram impacto na época.

Mas em, pelo menos, uma área do filme a contribuição de Hopper foi indiscutível: a escolha da trilha sonora para acompanhar as viagens de Billy e Capitão América. De forma inovadora para a época, as imagens de Sem Destino foram tiveram como acompanhamento sonoro apenas canções clássicas de grandes nomes do rock como The Band, Bob Dylan e Jimi Hendrix, entre outros, com a canção Born to Be Wild da banda Steppenwolf tendo virado hino do filme e do período. É acima de tudo um filme também para ser ouvido, e a trilha serviu para mostrar para os espectadores da época que o cinema havia mudado.

Contribuindo para essa sensação de mudança, Hopper se apropria em dado momento das paisagens de John Ford – há uma cena em que os heróis motoqueiros passam pelo Monument Valley e vemos aquelas estranhas e majestosas montanhas no meio do deserto, que Ford imortalizou nos seus westerns. Por onde antes haviam cavalgado cowboys e homens valentes, agora passava outro tipo de herói montado, dois caras drogados que queriam viver o ideal da liberdade que os Estados Unidos tanto propagam e valorizam – e um deles trazia a bandeira americana na jaqueta.

O que esses heróis descobriram é que essa propaganda era (e ainda é) falsa. É instrumental nessa descoberta o personagem de Jack Nicholson, um advogado bêbado encontrado pelos motoqueiros durante uma breve passagem pela prisão, que decide acompanha-los. O filme ganha em eletricidade quando Nicholson, a grande revelação do projeto, está em cena – o futuro astro rouba todas as cenas e seu personagem serve para demonstrar como a sociedade realmente teme e marginaliza aqueles que decidem viver ao largo dela. Isso é uma concepção hippie e datada? Hoje vivemos numa sociedade mais tolerante? Não necessariamente…

Essas reflexões sobre liberdade e escolha pessoal que o filme traz não envelheceram, ao contrário de outros segmentos dele, como a sequência na comuna ou a de alucinação no cemitério em Nova Orleans, momentos muito “anos 1960” que imediatamente datam o filme. Felizmente, o saldo de Sem Destino é muito positivo, e o impacto dele acabou sendo muito benéfico e importante para o cinema americano – como um dos primeiros exemplares da Nova Hollywood, o sucesso financeiro do filme foi fundamental para convencer executivos e donos de estúdios a investir em projetos de cineastas jovens e cabeludos. Tire Sem Destino da equação e não existiria Nova Hollywood. Schneider alcançaria voos ainda mais altos produzindo as obras-primas Cada Um Vive Como Quer (1970) e A Última Sessão de Cinema (1971); e Nicholson, bem… Virou Jack! Fonda virou ídolo de motoqueiros por todo o mundo e Hopper se perdeu nas drogas e desperdiçou a carreira de diretor, mas seguiu trabalhando como ator numa carreira duradoura e variada.

Acima de tudo, é o desencanto que dá a Sem Destino a sua força. Wyatt diz perto do fim: “Estragamos tudo” – ele se refere ao país, ao sonho hippie, a algo mais pessoal? Até hoje cinéfilos debatem. Em 1969 já dava para sentir que os ideais daquela década não mudariam o mundo na época seguinte. E o filme é sensato o suficiente para deixar nas entrelinhas que viver em liberdade total não é necessariamente garantia de acabar com o vazio espiritual do ser humano: a morte é que parece ser mesmo a única libertação. Do meio para o fim, o filme se enche de imagens evocativas da morte – há até um flashforward breve na mente de Wyatt, outra inovação para época. É irônico ver no filme dois sujeitos que partiram pela América em busca da vida tenham encontrado um país moribundo e imagens da morte na jornada, e essa ironia dá ao filme a sua força emocional. Afinal, podemos até ser “quadrados” e zombar do sonho hippie hoje, mas quem não se empolga com Born to Be Wild simplesmente não tem coração.  Podemos até ter estragado tudo, mas por um breve momento, naquela conjunção eletrizante de som e imagem, tudo parece bem demais e a estrada à frente oferece muitas possibilidades.