Entendo que as biografias nacionais partem de uma missão difícil para agradar o público médio de cinema: sintetizar a carreira do artista com a sua vida pessoal e amorosa e alinhá-las aos fatos sociais e políticos da época. Por isso é comum elas apostarem na fórmula tradicional de focar nos momentos mais importantes da vida do artista. Quando fazem o “feijão com arroz”, o resultado final é correto como é o caso de Cazuza – O Tempo Não Para (2004), Somos Tão Jovens (2013) e Tim Maia (2014). Aqueles que resolveram arriscar dentro deste padrão, tiveram resultados ainda mais interessantes como Dois Filhos de Francisco (2005) e Gonzaga, de Pai para Filho (2012).

Por isso é uma pena constatar que uma das maiores musas da MPB, dona de uma voz potente e maravilhosa que apresentou uma carreira marcada pela coragem, polêmicas e contradições ganhou um longa-metragem empalidecido que não atinge nenhuma das duas situações expostas acima. Elis de Hugo Prata é uma cinebiografia que beira a irrelevância artística, que jamais traduz na sua essência, a intensidade e passionalidade de quem foi Elis Regina (1945-1982) na vida artística e sua importância para a cultura nacional.

A produção por sinal apresenta reais dificuldades de proporcionar ao público uma vivência da dimensão artística e pessoal de quem foi Elis Regina (Andrea Horta), limitando-se apenas em descrever os principais acontecimentos da sua vida, no caso a sua chegada ao Rio de Janeiro em 1962 até sua morte em 1982. Estes 30 anos da carreira da cantora são apresentados no formato fast forward sem que o espectador consiga identificar qual é o foco principal dos dramas da personagem até porque o roteiro escrito por Prata em parceria com Luiz Bolognesi e Vera Egito não oferece qualquer complexidade para as motivações da cantora ou pelo menos deseje aprofundá-las. É como se todo o longa ficasse restrito apenas em pincelar os sintomas da personalidade multifacetada de Elis ao invés de investigá-la e desta maneira atingir o cerne da causa.

Essa fragilidade de concepção deixa a história não apenas fraca como cria uma narrativa irregular que impede o público se envolver com o enredo e deixa evidente que um dos objetivos de uma produção biográfica deste porte realmente fracasse na sua missão principal por não oferecer um retrato digno que um ícone da música como Elis mereça. O roteiro não amadurece os conflitos denotando a total falta de coragem do projeto de adentrar ao mundo particular da cantora para entendermos suas convicções.

A própria personalidade da cantora é delineada de forma rasa pela produção. Em vários momentos do longa-metragem diversos personagens citam Elis como corajosa e determinada, mas o que se vê na tela em nenhum momento aponta para estas características – ou então estas cenas ficaram perdidas na sala de edição. As nuances psicológicas de Elis e todas as suas transformações pessoais e artísticas são bruscas ou desprovidas de motivações mais sólidas que permitam o público compreendê-la. Para uma mulher forte e determinada como ela foi é difícil assimilar que a maioria das suas decisões dentro do filme surja mediante a opinião de algum homem com que ela se relacione e um exemplo disso é quando o primeiro marido de Elis, Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado) sugere que a cantora corte o cabelo e logo na cena seguinte ela já apareça com os mesmos curtos indicando que atendeu o desejo do seu homem sem questionar.

Hugo Prata comete seus equívocos ao evitar mergulhar na vida da artista. Quando um momento dramático começa a se estabelecer, logo o filme oferece outro conflito para mudar o foco, deixando que o primeiro seja explicado através de diálogos didáticos e frases de efeito que funcionam como respostas as epifanias de Elis, como se o próprio público não tivesse condições de compreender o que a personagem esta vivenciando naquele instante.

Na questão da passagem do tempo, o diretor também se perde por não dar um tratamento devido à montagem. Visualmente estas passagens são construídas através de elipses elegantes que dão ao filme uma construção cênica inspirada graças a bela reconstituição de época. Porém do ponto de vista narrativo, este tempo é marcado pelo descaso. Em certo momento, Elis e Ronaldo se detestam e basta na cena seguinte uma conversa banal e galanteadora por parte dele para que ambos se resolvam e iniciem uma relação amorosa. Em outro, observamos Elis e seu segundo marido, César Mariano (Caco Ciocler) felizes, mas logo em seguida ambos brigam e ele a acusa de estar perdida dentro do seu vício de álcool, sendo que em nenhum momento até então o filme mostrou a cantora como alcoólatra. Esta construção de cenas de forma arbitrária sem qualquer preocupação em estabelecer uma conexão de finalidade narrativa entre uma sequência e outra indica uma postura amadora por parte de Prata, digna daqueles trabalhos acadêmicos onde a pessoa cópia e cola os parágrafos sem se preocupar se com a lógica do texto.

Do ponto do retrato social e político, Elis consegue ser mais radical na sua caricatura até porque evita a polêmica ou mergulhar o dedo na ferida. As sequências voltadas para a ditadura militar são rasas e se resumem há poucos minutos em tela – a cena que Elis retorna para casa depois de interrogatório e percebe que o berço do filho encontra-se vazio beira a encenação da tensão novelesca. A crítica ao poder das gravadoras musicais também é sintetizada em um único momento – uma entrevista da cantora marcada por frases de efeito – e o próprio abuso de drogas por parte dela é bem discreto evitando manchar a imagem canonizada de Elis.

Para não dizer que só existem problemas, Elis realmente possui uma cenografia exuberante e caprichada. Prata consegue nos momentos musicais explorar tomadas interessantes que conferem ao filme a intensidade visual necessária e não dá para negar que escutar a voz potente da cantora em alto bom som no cinema permite uma viajem no tempo prazerosa para qualquer fã de MPB. Essas partes musicais realmente empolgam e a cena de Elis e Cesar Mariano tocando juntos pela primeira vez emociona.

Falando nas atuações, Andreia Horta realmente se esforça e oferece o carisma pontual à cantora, contagiando o público com sua simplicidade e energia. Porém não tem como fugir que sua atuação não alcança o potencial necessário que poderia em virtude dos problemas já citados do roteiro na caracterização da personagem. A atriz acaba desta maneira ficando mais restrita as imitações dos trejeitos da cantora do que desenvolver ainda mais sua performance. O elenco secundário comandando por Gustavo Machado, Caco Ciocler e Lúcio Mauro Filho que compõe o finado Miéle, falecido este ano, deixam as atuações sob a medida certa, ainda que seja Júlio Andrade que brilhe nos poucos momentos que apareça como o divertidíssimo Lennie Dane.

No geral, Elis funciona mais pela atuação eficiente do elenco e pela narrativa musical. É uma produção que você nota que apresenta uma vontade sincera de homenagear a artista, mas falha por ser uma biografia sem qualquer identidade em virtude do roteiro frágil e esquemático. Uma artista ousada e de coragem como Elis merecia um filme na mesma intensidade e que mergulhasse no seu universo particular de cantora, mulher e mãe. Se o filme deixa um gosto amargo por não captar a essência desta grande artista, ainda há a possibilidade de colocar para tocar na tranquilidade do lar, alguma faixa que permita sentir o timbre poderoso reverberado emoção nas suas belas músicas e que reproduzem  nas suas letras, a alma desta musa da MPB.