No noir, um subgênero peculiar dos filmes policiais, muito cultivado por Hollywood entre as décadas de 30 e 50 do século passado, a mulher aparece como um elemento de perturbação do mundo masculino. Dois de seus filmes mais ilustres são exemplos claros disso: em Pacto de Sangue (1944), de Billy Wilder, é Barbara Stanwyck quem inspira o crime cometido por Fred MacMurray, detonando os tristes acontecimentos da fita. Já no fenomenal O Grande Golpe (1956), de Stanley Kubrick, um crime perfeito é mitigado pela lealdade canina de um dos assaltantes à esposa infiel.

Na melhor tradição do noir, uma mulher é o elemento de ruptura em Em Transe, a nova produção do cineasta inglês Danny Boyle, que vem de uma sequência de sucessos: Quem Quer Ser um Milionário? (2008), 127 Horas (2010), e até mesmo a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Londres, no ano passado. Retomando o tema das tensões urbanas contemporâneas, que já alimentou duas de suas melhores produções (Trainspotting – Sem Limites, de 1996, e o já citado Quem Quer Ser um Milionário?), o filme une uma trama de assalto a uma complexa investigação psiquiátrica, mais ou menos nos moldes de A Origem (2010), do diretor americano Christopher Nolan. Complicado? Na verdade, não.

Simon (James McAvoy, em ótima forma) trabalha numa companhia de leilões de obras de arte, quando um dos eventos é invadido por uma quadrilha de assaltantes. Ele finge proteger a obra, mas na verdade também faz parte do bando. Tudo corre às mil maravilhas, até que Simon toma uma atitude impulsiva, que resulta no sumiço da pintura roubada. Os colegas, claro, ficam furiosos, e o rapaz toma uma coronhada que o faz esquecer do erro por semanas. Quando ele volta do coma, porém, fica a pergunta: cadê o quadro? O líder da gangue, Franck (o sempre eficiente Vincent Cassel) tenta refrescar a memória de Simon da forma mais convencional – tortura –, mas nem isso parece funcionar. Eis então que a quadrilha se vê na improvável situação de ter de contratar uma psiquiatra especialista em hipnose, Elizabeth (Rosario Dawson, linda, a grande força do filme), para ver se ela consegue extrair o segredo de Simon.

O mote é perfeito para exercitar a volúpia de efeitos visuais típica do diretor. Se antes ele havia se proposto a filmar os devaneios de um homem aprisionado numa montanha (como em 127 Horas), ou, de forma ainda mais arriscada, as diferentes sensações que acometem um viciado em heroína (em Trainspotting), aqui a ideia é investigar o mundo dos sonhos, o inconsciente. As soluções visuais de Boyle não são tão sofisticadas quanto as de Nolan (com um orçamento de 20 milhões contra um de 160 milhões de dólares, as suas também não seriam), mas o filme é fundamentalmente mais ágil e compacto. Tirando o final, quando a trama infelizmente perde fôlego, o filme é exemplar na ação vertiginosa, que não perde a atenção do espectador nem por um segundo. Na pulsação maníaca do diretor, a fotografia explosiva, a edição nervosa e a excelente trilha techno, reminiscente de Trainspotting, propulsionam a história como em nenhum outro filme que eu vi este ano. O elenco, com Dawson e McAvoy à frente, também responde de forma brilhante ao material.

Então, o que faz com que este filme não seja considerado um novo clássico? O mesmo problema que marca até os melhores trabalhos do cineasta: o excesso. Se nos dois primeiros atos o filme é enxutíssimo, no final o roteiro (de autoria do próprio Boyle) derrapa em soluções fracas (o “foi apenas um sonho” e o final “aberto”, dois recursos manjadíssimos nos últimos tempos, entre eles), e a condução hiperativa do diretor também exagera nos mesmos efeitos que antes haviam feito a força do filme. Que Boyle é um diretor muito talentoso, já está mais do que provado. Agora, se ele quer entrar de vez para o rol dos grandes, ele precisa disciplinar essa sua tendência à vertigem, controlar seu impulso para o excesso, ou fazê-lo funcionar a favor da história. Quando isso aconteceu (Trainspotting, Milionário), o resultado foi extraordinário. Quando não é o caso, como aqui, até temos o gostinho da grandeza – mas ele se perde no exagero de sabores.

Nota: 8,0