Glamourosos e com uma diversidade de gente de todos os tipos entre hóspedes e clientes, hotéis sempre foram locais adorados por roteiristas e diretores para ambientarem suas produções. De Edmund Goulding em “O Grande Hotel” (1932) ao clássico “O Iluminado“, de Stanley Kubrick” (1980) até sucessos recentes como “O Grande Hotel Budapeste“, de Wes Anderson (2014), filmes de todos os gêneros em hotéis não faltam.
Estreantes em longas-metragens, Cláudio Bitencourt e Diego Lopes entram para esta lista com “Lamento”. Rodado dentro de um hotel em Curitiba, a produção traz o Marco Ricca como Elder, um sujeito que herdou do pai um hotel decadente. Em suas mãos, o local passou de um resort de luxo para um hotel à beira da falência. Para piorar, leva uma vida de excessos com vícios em álcool e cocaína. O fracasso de sua vida profissional reflete em seu casamento, que está em ruínas e sem perspectivas de melhoria. No limite de seu equilíbrio emocional, Elder coloca tudo em risco ao enfrentar seus demônios e as consequências de suas decisões.
Neste bate-papo com o Cine Set, a dupla radicada no Paraná fala sobre como nasceu o projeto, a importância de ter uma ator como Ricca no elenco, as passagens por festivais no Brasil e no mundo, além do grave momento do cinema brasileiro.
Cine Set – Mais do que apenas o local de ambientação, o hotel acaba sendo um personagem de “Lamento”, influindo nas ações e no estado de espírito daquelas pessoas, especialmente no personagem do Marco Ricca. Quais foram as etapas de construção e os fatores principais levados em conta por vocês na concepção visual e até mesmo sonora do hotel?
Diego Lopes – “Lamento” é o nosso primeiro longa. Trata-se de um projeto de alguns anos em desenvolvimento partindo de uma vivência familiar minha ligada ao alcoolismo. Dali, saiu a premissa, a qual apresentei ao Cláudio e fomos desenvolvendo. Paralelo a isso, fomos atrás de financiamentos, modos de produzi-lo. A partir de 2017, quando estava tudo encaminhado, pudemos realizar uma imersão mais profunda.
Importante frisar que estamos falando de um filme de baixo orçamento, então, a partir do momento em que compreendemos a história e junto com os fantásticos profissionais que estiverem conosco, fizemos o desenho de produção do filme. O hotel é um personagem dentro do filme e optamos por locações.
Gravamos em um hotel que estava funcionando durante o período de filmagens. Pegamos toda a parte de lobby e os dois primeiros andares refazendo todo ele de acordo com a história.
Claudio Bitencourt – Os trabalhos de direção de arte e fotografia ajudaram a criar este conjunto e transpor as nossas ideias para realidade. Nos primeiros tratamentos, o hotel era ainda mais personagem. Ao longo do tempo, ele foi se moldando para complementar e servir de apoio destas sensações de todos que estão lá.
Cada quarto, a recepção, o escritório dele possuem uma personalidade própria. Tivemos que reformá-los, pintá-los, trocar papel de parede, escolher os pontos de luz, colocar ventilador de teto, etc. Para a gente, foi necessário ter esta liberdade para poder construir nossa história. Apesar de ser uma locação, foi quase como trabalhar em um estúdio.
Cine Set – Vocês deixaram estas partes reformadas para o hotel?
Diego Lopes – De forma alguma. Tivemos que entregar o hotel da maneira original. Um ponto interessante da escolha deste local é que ele deve ter uns 40 anos e passava por reformas, uma modernização. Porém, os dois primeiros andares que usamos ainda estava no formato original.
De qualquer modo, fiquei muito feliz com o resultado final, pois, serviu bem ao propósito da história.
Cine Set – O Elder é um personagem pesado, difícil como protagonista com problemas financeiros, alcoolismo, drogas e as relações pessoais fracassadas. Como foi o processo para elaborar essa empatia dolorosa com o protagonista? E, claro, a importância do Marco Ricca para alcançar isso?
Diego Lopes – Acredito que o processo de empatia vem naturalmente a partir do momento em que passamos a entender a história deste personagem. O que gosto da trama de “Lamento” é que o Elder tem um perfil de anti-herói ao enfrentar os seus demônios. A empatia chega porque todo mundo tem os seus monstros e aquele momento da vida de não saber se vai ou não dar certo.
Isso aconteceu de forma clara para diversas pessoas durante a pandemia. Muita gente lidou com os fechamentos de seus negócios, problemas pessoais intensos – o número de divórcios cresceu demais neste 1,5 ano. Logo, o público nota com o Elder que lidar com os seus demônios não é uma coisa tranquila.
E o Marco Ricca se soma a isso de maneira incrível. O processo de criação do filme evolui a todo momento. No momento em que estamos com os atores, alcançamos uma nova camada de desenvolvimento da obra e ele é um ator fantástico e uma pessoa incrível. A carga que o Ricca trouxe e a maneira como se doou ao papel fez com que conseguíssemos elevar ainda mais a história.
Cine Set – Gravei recentemente um podcast com o Sérgio Andrade, diretor amazonense de “A Floresta de Jonathas” e “Antes o Tempo Não Acabava”, e ele falou sobre as tensões existentes com trabalho de codireção. Gostaria de saber como funciona a dinâmica de vocês durante todo o processo e o que foi mais difícil ao saltar agora para um longa-metragem.
Claudio Bitencourt –Só funciona porque a gente tem muita experiência de estarmos junto e pensarmos de forma bem parecida. Temos visões próximas sobre contar uma história, de rodar o material. Claro que cada um possui suas particularidades, mas, os nossos objetivos são parecidos, além de sempre debatermos bastante sobre onde e como queremos chegar lá.
O Diego, por exemplo, lida muito bem com os atores, algo que considero incrível. Por mais que seja discutida como será a direção dos intérpretes, evitamos de falar ao mesmo tempo para que não confunda a cabeça de quem está recebendo as informações. Uma boa direção é conseguir transportar de forma clara aquilo que você deseja. Tentamos criar esta sinergia entre nós dois para que isso seja muito cristalino para quem trabalha conosco, incluindo, a equipe técnica.
Diego Lopes – São 11 anos trabalhando juntos e tudo é muito dialogado em cada etapa. Dentro do set, cada um possui uma dinâmica onde a gente conversa setorialmente para que não haja ruídos. Eu tenho uma conversa muito grande na parte de atuação, enquanto o Cláudio tem uma visão incrível de plano, fotografia, o universo técnico.
Cine Set – “Lamento” passou por festivais nos EUA – Nashville, Kansas -, Egito, Colômbia, além do Festival de Brasília. Ainda que não tenhamos a mesma condição dos eventos presenciais, como vocês têm sentido a recepção do filme? Nos eventos internacionais, o público chega a fazer algum paralelo com Brasil, o país como um todo?
Diego Lopes – O conflito que apresentamos em “Lamento” é universal e está sendo bem-recebido por onde passa. Assistir a um filme, claro, é um processo de interpretação subjetivo. Essa pluralidade é extremamente positiva.
Cine Set – Falar de cinema brasileiro neste momento é inevitável tocar na questão da Cinemateca. Gostaria de saber como vocês receberam esta notícia, o que representa aquela tragédia e vocês têm alguma esperança para o futuro do cinema brasileiro.
Claudio Bitencourt –Obviamente era uma tragédia anunciada. Quem trabalha com cinema sabe o quanto este tipo de material é sensível, precisa de cuidado e o quanto é valioso para a cultura de um país. Você vê memórias, histórias sendo queimadas… é realmente muito triste. Talvez o Diego seja mais otimista do que eu, mas, acho que a tendência de dificuldade para se fazer cinema no Brasil seguirá sendo grande por um bom tempo. Claro que sempre foi, especialmente, fora do eixo Rio-São Paulo, mas, vejo ser ainda mais agora.
Isso, na minha visão, passa por uma dificuldade de se entender o que é cultura, a cultura brasileira e como valorizá-la. Acho que temos um longo caminho pela frente que estava avançando, mas, estagnou totalmente. Teremos muita dificuldade pela frente e acho difícil ver um horizonte agora.
Por ser uma indústria robusta, mas, ainda não tão madura como em outros países, precisamos de incentivos, de investimentos. Porém, observa-se um decréscimo no olhar e investimento para a arte e o cinema. É muito estranho por vermos tanta coisa incrível do cinema brasileiro e, mesmo assim, isso não ser reconhecido como investimento. Sou um pouco pessimista neste momento atual, mas, temos que continuar lutando e achando formas de contas histórias.
Diego Lopes – Sim, eu sou mais otimista, porém, vejo com tristeza, o processo infeliz de desmonte cultural em que a Cinemateca acaba sendo um retrato disso. Infelizmente, o Fundo Setorial do Audiovisual, responsável pela descentralização da produção de cinema, precisa voltar a funcionar em sua plenitude
Porém, temos um grupo cultural extremamente forte, muito criativo. Existem frentes de produções, o streaming está crescendo, sempre há a possibilidade de fazer filmes. Acredito que novos ventos virão em breve, sendo possível uma correção de rumos em prol de um investimento cultural mais sólido e coerente com o que deva ser.