Quantos filmes de estreia que você conhece que poderiam entrar num Top 10 do maior diretor americano vivo, Martin Scorsese? Pois Pura Adrenalina, de Wes Anderson, chegou lá. “Ah, mas o que importa se é o favorito de algum nerd do cinema, quando eu e você nunca nem ouvimos falar nele?”, você talvez argumentasse.

Ao que se poderia dizer: pena que não prestamos mais atenção à dica do mestre americano (revelada em uma entrevista ao crítico Roger Ebert, quando este o indagou sobre os seus filmes preferidos da década de 1990, e que pode ser lida aqui), porque o quase desconhecido Adrenalina não é uma mera curiosidade na carreira de Anderson – é um dos melhores trabalhos de uma filmografia onde não faltam momentos brilhantes, status que se mantém mesmo diante de criações imponentes como Os Excêntricos Tenenbaums (2001), Moonrise Kingdom (2012) ou O Grande Hotel Budapeste (2014).

A provar que uma genuína voz cinematográfica se faz impor desde as primeiras tentativas – penso nas obras de estreia singulares de gente como Federico Fellini, François Truffaut e do próprio Scorsese –, Pura Adrenalina apresenta várias virtudes da obra posterior de Anderson, mas com um tom de leveza e simplicidade que depois não se veria igual em seus trabalhos futuros, mais barrocos e fabulares.

A rigor, não há nem uma trama: apenas acompanhamos as andanças de três amigos que poderíamos chamar de losers – Anthony (Luke Wilson, na primeira parceria com o diretor), um rapaz romântico e delicado, recém-saído de uma temporada numa clínica para doenças mentais; Dignan (Owen Wilson, irmão de Luke, coautor do roteiro e igualmente estreante), um sonhador e ostensivamente incompetente pequeno-golpista; e Bob (Robert Musgrave), um herdeiro rico e lerdo que é desprezado pelos familiares.

Todos habitam uma zona de mediocridade sufocante e quase desespero, naquele estrato da sociedade americana chamado cruelmente de white trash (lixo branco), mas não se deixam abater: nas desventuras em que eles se metem ao longo do filme, as quais incluem roubos bem e mal sucedidos, paixões fulminantes num hotel de beira de estrada, e o encontro com gângsteres de verdade, Adrenalina é muito mais uma celebração do quanto de épico e intenso pode caber em vidas tão banais, e, principalmente, do prazer que é acompanhar grandes personagens e diálogos deliciosos, fluindo lindamente em diáfanas hora e meia de duração – uma influência importante, creio, no trabalho de outro colega americano, Alexander Payne, que, mesmo tendo começado antes, só se faria notar pra valer com a mesma combinação de personagens comuns, diálogos ferinos e atenção aos pequenos dramas do dia-a-dia, a partir de Eleição (1999).

Nesses e em outros detalhes, Adrenalina é um raro caso onde tudo funciona: a delicadeza e sensibilidade de Anderson na direção, em total empatia com os personagens e a atmosfera da história que ele está contando; a montagem enxuta, onde nenhuma cena se alonga além do necessário para estabelecer a situação; a fotografia de Robert Yeoman, parceiro frequente do cineasta, que, em seus lindos verdes diurnos e noites azuis, empresta a mesma poesia à terra dura americana de um Paris, Texas (1984); e o elenco afinadíssimo, que inclui uma participação hilária de James Caan (de O Poderoso Chefão e Louca Obsessão) e o belo e sutil desempenho da mexicana Lumi Cavazos (de Como Água para Chocolate), mas onde o destaque óbvio são os irmãos Wilson: embora os diálogos deem mais oportunidade para o tour de force particular de Owen, que está mesmo um arraso como o tragicômico Dignan, é Luke o coração e o emblema da criação de Anderson – o olhar melancólico e o jeito introvertido do ator emprestam pungência mesmo aos momentos de maior ridículo, uma qualidade que Anderson aproveitaria de novo em Três É Demais (1998) e Os Excêntricos Tenenbaums.

E olhe que esses são justamente os filmes que ele faria logo depois de Pura Adrenalina. Pois, para todos de nós que fomos convertidos à beleza e à poesia do cinema de Wes Anderson a partir de Tenenbaums, o filme que de fato o pôs no mapa, a qualidade e maturidade deste aqui é mais do que uma revelação – é um trabalho à altura e, em certos sentidos, até superior a seus irmãos mais conhecidos e celebrados. Seus criadores, pelo menos, sabiam disso: à época do lançamento, Adrenalina foi um fiasco de público tão grande que um desiludido Owen Wilson quase abandonaria o cinema para se alistar na Marinha – o homem que depois seria um dos comediantes mais bem-sucedidos de Hollywood, e igualmente capaz de entregar desempenhos duradouros no drama. Felizmente, alguns seres humanos mais sábios e atentos do que nós, como Scorsese e boa parte da crítica americana contemporânea, que não deixaram Adrenalina morrer sem ser notado, nos mostraram o que estávamos perdendo.