Avenida São João, 1462, Centro de São Paulo.

Esse foi o endereço de um dos principais cinemas da capital paulista: o Cine Comodoro. Aberto pelo empresário Paulo Sá Pinto no dia 14 de agosto de 1959, o espaço trouxe a tecnologia Cinerama – imagens projetadas em widescreen a partir de três projetores de 35mm rodados simultaneamente – para o Brasil. A cortina vermelha abria-se sempre no início das exibições, revelando uma tela curva com 20 metros de comprimento e sete metros de altura. A sala de exibição com capacidade para 1.400 lugares trazia uma experiência de aproximar o público do filme, semelhante ao efeito proporcionado ao 3D nos dias atuais.

A história do Comodoro, entretanto, terminou no dia 23 de março de 1997. A especulação imobiliária, o crescimento do mercado de DVD e VHS, além da fuga dos espectadores para salas de exibição de shopping centers com programações mais voltadas para os lançamentos de Hollywood marcou o fim do espaço. Um incêndio causado por problemas nas instalações elétricas ocorrido em agosto de 2000 acabou de vez com a possibilidade de reabertura, pois, toda a estrutura presente foi danificada. Atualmente, na área onde as filas para entrar no cinema tomavam conta da rua, resta uma grade verde e lonas brancas para evitar invasões no terreno desocupado.

O triste fim do Comodoro não diferiu muito do que aconteceu com diversos cinemas de rua do Brasil. Espaços tradicionais como Gemini, Cine Joia (São Paulo), Cine Amazonas, Cine Pathé (Belo Horizonte), Cine Astor e Cine Teatro Presidente (Porto Alegre), Cine Excelsior (Salvador), Renato Aragão e Chaplin (Manaus) deixaram de ser abrigo da sétima arte para se tornarem estabelecimentos comerciais, igrejas e estacionamentos.

O Rio de Janeiro aumentou a lista ainda mais no mês de junho de 2014 com o anúncio do fechamento das salas do grupo Severiano Ribeiro no Leblon, além da manutenção por tempo indeterminado do Cine Odeon, localizado na Cinelândia e conhecido por ser onde aconteceram pré-estreias de filmes internacionais nos últimos anos.

Balanço divulgado em maio deste ano pela Agência Nacional de Nacional (Ancine) confirma esse cenário de crise: redução de 15,8% dos cinemas de rua entre os anos de 2009 e 2013. São apenas 335 salas por todo país. Por outro lado, a quantidade de espaços de exibição dentro de shoppings cresceu 87,5% e soma 2.343 locais no Brasil inteiro. Para efeito de comparação, o país tinha 3.276 salas nos anos 70, sendo a maior parte delas formada por cinemas de rua.

São Paulo resiste: Espaço Itaú e a luta do Belas Artes

O cenário de crise para o cinema de rua, entretanto, não impede que surjam iniciativas e tentativas de resistência. O Espaço Itaú de Cinema na Rua Augusta, em São Paulo, é um dos mais populares empreendimentos do ramo com público médio estimado entre 400 a 500 mil espectadores por ano.

Aberto em 1947 com o nome de Cine Majestic, o local ficou sob o controle do Banco Nacional e Unibanco nos anos 90 até se tornar do Itaú já em 2008. Gestor do espaço há mais de duas décadas, o empresário Adhemar Oliveira acredita que o equilíbrio entre o comercial e a paixão pelo cinema permite o sucesso do empreendimento. “Se você passa da linha e começa a exibir obras demais sem tanto apelo do público acaba falindo. Por outro lado, não é possível pensar apenas no dinheiro e esquecer a qualidade da programação, pois, corre o risco de perder os nossos consumidores”, declara.

Criador do conceito arteplex no Brasil – conjunto de salas em um determinado espaço voltado apenas para exibição de filmes do circuito alternativo – Adhemar considera essencial a presença de grandes empresas para manter os cinemas de rua ainda vivo. “Essa questão dos naming rights permite segurança operacional para o negócio. Por exemplo, durante o período das grandes manifestações de junho de 2013, o Espaço de Cinema sofreu grande queda de público, pois, as pessoas evitavam a área com medo dos conflitos na Avenida Paulista. Um parceiro forte como o Banco Itaú ajuda a estancar esses momentos de crise e segurar o prejuízo. Além disso, facilita na exibição de filmes importantes que não seriam apresentados caso se pensasse apenas no lucro imediato”, disse.

A presença de grandes empresas na gestão dos cinemas de rua se confirma nos cinco estabelecimentos do ramo ainda em funcionamento na capital paulista: Cine Sabesp (Rua Fradique Coutinho), CineSesc e Espaço Itaú de Cinema (Rua Augusta), Playarte Marabá (Avenida Ipiranga), Reserva Cultural (Avenida Paulista).

A lista deve aumentar com a reinauguração do Cine Belas Artes. Localizado na esquina da Rua da Consolação com a Avenida Paulista, o espaço fechou as atividades 17 de março de 2011 após término do patrocínio do HSBC e o dono do prédio requisitar o imóvel para a construção de um centro comercial. A história iniciada em 1943 com o Cine Ritz encontrava o derradeiro “The End”.

Porém, se os protestos feitos por clientes não surtiram efeito imediato, o abaixo-assinado para reabrir o cinema atingiu a marca de 100 mil pessoas, pressionando o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat) a aprovar o tombamento da fachada do Belas Artes. Um acordo entre a prefeitura paulista e a Caixa Econômica Federal irá reabrir o local em julho deste ano

O jornalista Fábio Ornelas aproveitou a mobilização pelo cinema para fazer um documentário sobre o fechamento do espaço. Intitulado “Belas Artes – A Esquina do Cinema”, o filme mostra as últimas sessões do espaço com depoimentos de funcionários e clientes sobre a importância do local.

Para Ornelas, o Belas Artes traz uma história importante para São Paulo e não pode ser esquecido. “Durante a época da ditadura militar, por exemplo, muitos filmes censurados eram exibidos lá de forma clandestina em sessões promovidas pelos amigos da Cinemateca Brasileira. Isso ajudou a formar uma geração de cineastas e cinéfilos brasileiros. Acredito que as pessoas precisam prestigiar sempre bons espaços culturais e de convivência pública. O cinema é um ótimo local para isso”, afirma. O documentarista, entretanto, ressalta que a reinauguração não marca uma vitória definitiva, pois, caso a Caixa Econômica desista do patrocínio ao término do contrato de dois anos, o Belas Artes pode voltar a fechar as portas. “Quem realmente mantém estes locais vivos é o público”, declara.

Joaquim Nabuco e redes sociais: alternativas para o Norte e Nordeste

O Nordeste do Brasil traz também iniciativas estimulantes para o cinema de rua. Com a presença dos cineastas Kleber Mendonça Filho (“O Som ao Redor”) e Marcelo Gomes (“Cinema Aspirinas e Urubus”) entre os primeiros coordenadores, o Cinema da Fundação se tornou referência como espaço para filmes de arte em Recife. Originado a partir do Cineclube Jurando Vingar nos anos 80, o local conta com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco, órgão ligado ao Ministério da Educação do Governo Federal.

A iniciativa possui público médio de 62 mil pessoas por ano, números considerados elevados para o atual gestor do local, Luiz Joaquim. “Nosso espaço ficou pequeno, pois estamos com o máximo da ocupação anual. Para construir esse publico foi necessário persistência, uma vez que decidimos colocar filmes que não agradam pela facilidade do simples entretenimento em nossa programação. Em 1998, já chegamos a fazer sessão para apenas um espectador. Hoje, temos sessões que cerca de 100 pessoas não conseguem entrar. Aqui, o critério principal é trazer filmes que nunca seriam exibidos no circuito do Recife, mas, dentro desse critério, privilegiar filmes que ofereçam algo de proveitoso ao espectador não apenas pelo idioma da película, mas também por aspectos sociais, psicológicos, ético, moral. Há um feeling para programar filmes, que não se traduz em fórmulas”.

Se Pernambuco trouxe algumas das melhores produções brasileiras dos últimos anos (“O Som ao Redor”, “Tatuagem”, “Eles Voltam”, “Febre do Rato”, “Amarelo Manga”), o Cinema da Fundação pode ser visto, segundo Luiz Joaquim, como um campo importante para o debate e a formação dessa geração de cineastas e cinéfilos. “O espaço é uma casa aberta para lançar curtas e longas locais, além de promover debates em torno deles. Com os cursos, seminários, discussões que promovemos por diversas vezes ao ano, a população da cidade enrique seu repertório e evolui na sua capacidade de produzir bons filmes”. O sucesso em Recife motivou a Fundação Joaquim Nabuco a investir nas salas do Dragão do Mar em Fortaleza, no Ceará. Desde setembro de 2013, as duas salas do local já levaram um público estimado pelos gestores em 40 mil pessoas.

Já na região Norte do Brasil, o Pará ainda mantém o mais antigo cinema de rua do Brasil: o Cine Olympia. Inaugurado no dia 24 de abril de 1912, o espaço chegou a ser fechado em 2006 por decisão do proprietário do imóvel. Após uma série de reivindicações da classe artística e da população de Belém, o local foi reaberto e mantém uma programação voltada para filmes fora do circuito comercial tradicional.

Manaus perdeu os últimos cinemas de rua no início dos anos 2000 com o fechamento do Cine Chaplin e Renato Aragão no centro da cidade. Por outro lado, a capital amazonense soma 49 salas dentro de seis shoppings. As empresas exibidoras (Cinépolis, Cinemark, Kinoplex Severiano Ribeiro e Playarte) destacam em cartaz os principais blockbusters de Hollywood e as comédias populares da Globo Filmes, sobrando pouco espaço para os filmes de artes ou com pouco apelo.

Motivados pela falta de exibição ou demora no lançamento de filmes importantes como “Azul é a Cor Mais Quente”, “Vidas ao Vento” e “12 Anos de Escravidão”, um grupo de cinéfilos e produtores audiovisuais da cidade se reuniu para a criação de duas iniciativas nas redes sociais: “Por uma Sala de Cinema de Arte em Manaus” e “Campanha por Filmes Alternativos em Manaus”. Cada página atingiu mais de mil seguidores em pouco mais de quatro meses no ar.

Diretor vencedor do Amazonas Film Festival pelo curta “Perdido” e integrante do movimento nas redes sociais, Zeudi Souza considera que a necessidade da criação do cinema de rua vai muito além de apenas se assistir filmes. “Ter essas salas pode retomar um ponto de encontro para o público discutir os aspectos sociais e políticos de uma obra, algo que dentro de um shopping não existe, pois, busca-se apenas o entretenimento. Outro ponto seria trazer um público que não se sente à vontade de ir nesses centros comerciais pelo fato de tudo ser mais caro”, declara, salientando que a iniciativa concentrada no Facebook atraiu a atenção da Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult) e vereadores da Câmara Municipal de Manaus para a discussão de projetos para viabilizar a ideia.

Tendência irreversível?

O jornalista e coordenador de curso da Academia de Cinema de São Paulo, Franthiesco Ballerini considera o fim dos cinemas de rua irreversível. Para ele, esses espaços devem ficar cada vez mais restritos nas grandes cidades brasileiras. “A falta de segurança afastou o público desses lugares. Com a comodidade oferecida pelos shoppings aliada à disponibilidade do estacionamento para carros e motos, o público opta por onde fica mais tranquilo e confortável. Além disso, a especulação imobiliária encareceu os preços dos terrenos e dificulta a permanência desses empreendimentos”, afirmou.

Mesmo considerando haver certa nostalgia quanto à importância cultural dos cinemas de rua, Ballerini teme a desertificação dos espaços públicos sem esse tipo de empreendimentos. “Não podemos deixar que nos tornemos uma Los Angeles, onde somente se circula de carro e o hábito de caminhar nas calçadas se perdeu. Essas salas localizadas nas ruas das cidades ajudam nesse processo de circulação de pessoas por determinadas áreas”.

O sucesso do Espaço de Cinema Itaú faz com que Adhemar Oliveira seja mais esperançoso na racionalização dos investimentos. “Quando o Banco Nacional comprou o Cine Majestic, a Rua Augusta era escura e com pouca movimentação de pessoas. O cinema acabou sendo o vetor de desenvolvimento da área, permitindo a aparição de bares, mercados, restaurantes, além de valorizar os imóveis. Precisa-se, na verdade, é mudar a mentalidade desse capitalismo burro. Isso significa que não se pode esgotar todos os recursos de uma área e depois deixá-la, estimulando a cultura do abandono. A cidade não pode ser uma moda”, afirma o empresário, citando o caso da Praça da República como uma região que precisa ser revitalizada.

Já Zeudi Souza acredita na falta de políticas públicas como uma das responsáveis pelo desaparecimento dos tradicionais cinemas de rua. “Aqui em Manaus, por exemplo, há imóveis públicos abandonados ou com pouca utilização capazes de abrigar esse tipo de empreendimento. Em uma cidade com dois milhões de habitantes e uma produção audiovisual em crescimento, haveria público para dar o retorno necessário para o investimento”, disse.

O setor de comunicação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) informou que o projeto de fomento para a ampliação e digitalização do parque exibidor já liberou mais de R$ 130 milhões em 250 salas por todo Brasil. Intitulado “Cinema Para Você”, o programa conta com parceria do BNDES e da Caixa Econômica Federal e foca na abertura de complexos em cidades de porte médio e bairros populares nas grandes cidades.

Mesmo com esse tipo de incentivo, porém, o órgão admite dificuldades na manutenção das salas de cinema de rua. A Ancine aponta como principal fator para a decadência a mudança no modelo de negócio do setor com a predominância dos grandes exibidores nacionais e internacionais voltado para a construção de espaços dentro de shoppings. Questões relativas aos altos custos de operação, as empresas de menor porte com dificuldades para se manter, além de um consumidor mais exigente quanto a segurança e comodidade agravam ainda mais o cenário.