Na era do streaming e do alívio imediato talvez já seja difícil imaginar que para assistir um filme você precisava ir a uma locadora, ao cinema ou simplesmente se programar pelo horário da televisão aberta. Entre os muitos costumes que emergiram desses rituais, um deles tem relação direta com Mandy, o novo filme que Nicolas Cage e Panos Cosmatos lançam em 2018, mais especificamente a tradição dos Filmes da Madrugada, nossa versão dos midnight movies  norte americanos.

Assim como os filmes relegados a passar no “horário menos nobre” das televisões abertas, Mandy é barato, imperfeito e esquisito. Panos Cosmatos encara seu segundo trabalho na direção usando uma abordagem parecida com a de seu filme anterior – Beyond the black rainbow, de 2010, outro midnight movie maldito em que a atmosfera domina o clima da projeção. O estado de espírito de seus personagens sempre assume o primeiro plano na forma como a realidade do filme é apresentada, o estado de espírito dos personagens é o estado de espírito do próprio longa.

O granulado intenso transporta a história diretamente pra outra época, como um VHS de locadora perdido desde um 1983 alternativo e agora descoberto. De um momento pro outro cores primárias invadem a luz do ambiente. O rosto dos atores, até então retratado de forma realista, ganha tons de vermelho, roxo, azul e verde. Essas luzes dão cor e preenchem ambientes e cenas inteiras, ao ponto de trechos completos da história acontecerem sob o reinado do vermelho e do preto. Panos talvez deva muito a maneira como Suspiria (1977) e Stallone Cobra (1986) usaram cor e gênero, uma mistura inusitada e peculiar.

Pouco antes de vermos um estranho vapor colorido no céu, o casal Red e Mandy dividiam um momento romântico, em seguida a imagem dissolve para um céu ensolarado. A montagem opõe o filme quando ele representa de forma lírica o estado de espírito dos personagens contra o mundo real em que eles habitam, nos dando assim uma chave para entender melhor a loucura que virá a seguir.

 O pulso criativo do filme brilha também ao sugerir mais do que seu orçamento poderia mostrar. Quando um grupo de motoqueiros demoníacos surge em meio a fumaça, sombras e o vermelho dos faróis, nós sentimos mais a presença do grupo do que realmente enxergamos algo, mérito do brilhante trabalho de som que amplia e fortalece as boas idéias da fotografia. E chega a ser hipnótica a maneira como Mandy (Andrea Riseborough) emerge do lago iluminada apenas pela fogueira numa cena íntima entre ela e Red (Nicolas Cage). Mais uma vez o uso sugestivo de luz, enquadramento e movimento fazem com que a personagem pareça uma entidade sobrenatural em meio aos elementos primordiais da natureza.

Esquisito não é só o visual de um filme da madrugada, é o sentimento de assisti-lo, uma inquietação interna que geralmente só a fantasia aliada ao suspense e/ou terror conseguem produzir.

Além do grande e imperfeito filme que é, Mandy também serve de veículo para energia muito particular que Nicolas Cage trás para os seus papéis. O personagem que ele encarna tem muito de todo o subgênero que o suporta, o dos infames “filmes de vingança”. Desde que alguém mexeu com a família de Charles Bronson, provocando seu lendário Desejo de Matar em 1974, até os incansáveis sequestradores de filhas do Busca Implacável com Liam Neeson nos anos 2000, acompanhamos o catártico e autodestrutivo movimento de um personagem buscando algum tipo de justiça, um prato cheio para que Nicolas Cage perca o controle, for him to lose his shit. Nesse sentido o protagonista se vê envolvido no universo hostil e lisérgico de um Culto new age interiorano, mais um dos pontos em comum entre a trama de Mandy e de Stallone Cobra, filme em que uma cidade é aterrorizada por uma seita violenta. Curiosamente Panos é filho do diretor de Cobra, George P. Cosmatos.

Cobra, de 1986 versus Mandy, 2018

A lisergia provocada pelo uso de drogas do grupo e o lado místico que suas crenças evocam criam alguns dos melhores momentos da experiência. Numa das cenas do Culto em questão, Cosmatos chega a referenciar Persona de Bergman, se apropriando de um dos seus momentos mais icônicos e o reutilizando de forma completamente inesperada.

Como dito antes, apesar de toda criatividade e visão singular da equipe envolvida, Mandy possui problemas de ritmo e uma segunda metade que vai funcionar melhor ou pior dependendo do “gosto do freguês”. Ainda sim este é um dos filmes obrigatórios de 2018 e também o último e impressionante trabalho de Jóhann Jóhannsson na trilha sonora original.

Nas fotos abaixo acontece um dos momentos mais emocionantes do filme, sob o love theme de Jóhannsson assistimos um flashback de Red num momento descontraído, fumando e bebendo num bar.

Red percebe algo, seu entorno escurece.

O azul invade o quadro aos poucos, é seguido pelo roxo e um flare luminoso que explode sobre o topo de sua cabeça, sublinhando de forma mística o despertar de uma energia fundamental dentro de si.

Corta e finalmente descobrimos o quê ou quem despertou Red de seu sonambulismo mundano. Mandy, no provável o momento em que eles se apaixonaram.

(O primeiro filme de Panos Cosmatos, Beyond the black rainbow, de 2010 me inspirou a realizar um curta de gênero chamado O Necromante, de 2016)

Mandy, Love theme, por Jóhann Jóhannsson

O Necromante, 2016

Nicolas Cage perdendo a cabeça