No ano em que Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino, completa impensáveis 25 anos (acho que falo pelas pessoas da minha geração quando custo a crer que já não foi ontem), sua influência continua a fazer sombra sobre o cinema de ação americano – ou, ao menos, assim sugere Free Fire, o novo filme de Ben Wheatley (de Turistas [2012] e do ótimo High-Rise [2015], ainda pouco conhecido no Brasil), com a oscarizada Brie Larson à frente.

Como aquele filme, a obra de Wheatley usa um cenário fechado por praticamente toda a sua duração. Também como em Cães, seus personagens são criminosos pés-de-chinelo, em permanente sobressalto uns com os outros. Mas Free Fire vai ainda mais longe no elo tarantinesco, graças a sua reverência ao western: o que Wheatley e sua corroteirista, Amy Jump, realmente tentaram com a obra foi uma releitura do faroeste, sobretudo os pitorescos spaghetti de Sergio Leone, com seus homens feios, sujos e malvados e os diálogos mais sacanas do gênero.

É, provavelmente, um mundo fechado demais, específico demais, de referências para o espectador ocasional, o que pode explicar o fracasso comercial do filme, lançado ano passado. Mas, assim como o também subestimado Green Room (2016), em que Anton Yelchin e um elenco de rostos desconhecidos lutavam pela sobrevivência após testemunhar um assassinato num clube punk, a obra de Wheatley é compacta, enxuta e nervosa – e um deleite para os que apreciam a clássica simplicidade de seu duelo de homens brutos e balas.

Numa fábrica abandonada de Boston, em 1978, dois grupos se reúnem para negociar uma compra de armas. Chris e Frank (Cillian Murphy, de Extermínio, e Michael Smiley, mais conhecido no Brasil por sua participação no episódio “White Bear” de Black Mirror) são combatentes do Exército Republicano Irlandês (IRA) em busca de rifles capazes de fazer estrago. Com eles está Justine (Larson), a intermediária que os levou ao fornecedor. Do outro lado estão o vaidoso e estúpido traficante de armas Bernie (Sharlto Copley, que desde Distrito 9 tem se esbaldado em papéis exagerados e atuações canastronas) e seu sócio Martin (Babou Ceesay), igualmente munidos de um diplomático aproximador, Ord (Armie Hammer, de O Cavaleiro Solitário). Apesar da rudeza das partes, e da tensão inerente a esse tipo de situação, todos estão empenhados em resolver a coisa da forma mais rápida e tranquila possível. Infelizmente, os dois lados também estão servidos de capangas (com destaque, em cada lado, para Sam Riley, de Control, como o aparvalhado Stevo, e Noah Taylor [o Locke de Game of Thrones], patético e sinistro a um só tempo como Gordon), e estes, por acaso, se conhecem – e têm rusgas cheias de pólvora, esperando apenas a primeira faísca.

Free Fire não é, e nem quer ser, um filme de narrativa intrincada e viradas surpreendentes no roteiro, com os do seu inspirador Tarantino – o que este realmente ostenta com orgulho é a perícia de seus longos tiroteios, bem como a condução precisa da tensão entre os protagonistas. Wheatley respeita o ritmo das situações e a geografia de seu set, e mesmo com os vários personagens (que não param de crescer – lá pro meio do filme, dois mercenários entram na jogada), dispostos por todo o térreo da fábrica, a ação sempre é clara e fácil de acompanhar.

Como todo o resto, o trabalho dos atores é conciso, direto e evidencia o prazer dos participantes. Larson e Murphy lideram o time, mas o elenco é homogêneo, e todos os pequenos grupos de personagens têm seu espaço para brilhar – a disputa entre Smiley e Copley para chegar ao telefone do edifício é tão divertida quanto absurda (e brutal).

Se há algo negativo a se dizer de Free Fire, têm de ser suas assumidas despretensão e falta de originalidade. A obra não oferece um subtexto intrigante, não cria personagens capazes de ficar na memória, nem ostenta a centelha de intensidade que Tarantino ou Martin Scorsese (que assina a produção executiva) trariam a esse tipo de material. Mas, por mim, tudo bem: nem todo diretor é, ou precisa ser, um Sergio Leone, assim como um filme não precisa chegar a ser um Três Homens em Conflito para merecer a conferida. Para terminar as analogias, se Tarantino e Cães (e também Os Oito Odiados) são Leone, Wheatley e Free Fire equivalem ao bem mais modesto – mas também satisfatório por seus próprios méritos – Django, de Sergio Corbucci. Se esses nomes lhe falam ao coração, pode se aventurar sem medo pelo frenesi de balas que é Free Fire.