Entre a década de 70 e início da década seguinte, Brian De Palma lançou seis trabalhos. Carrie – A Estranha (1976) e Vestida para Matar (1980) foram às obras que colocaram o nome do cineasta em evidência no panteão cinematográfico. Mas nem só de louros e dividendos, De Palma conviveu nesta época. Em 1978, ele dirigiu um trabalho que foi duramente criticado e até hoje é visto com maus olhos por parte do público: A Fúria. Com o passar dos anos, tornou-se uma obra desprezível que quase ninguém lembra ou recorda para meter o pau, uma espécie de trabalho “fantasma” no repertório do diretor.

Lembro-me da primeira vez que o conferi. Foi em 1995 e nesta época só conhecia do diretor, Missão Impossível (1994). Apesar de simpatizar com o filme, não entendia muito a adoração em torno do cineasta. Aluguei na locadora Carrie para fazer a prova dos noves. O filme da jovem telepata deixou boas sequelas cinematográficas para um bom apreciador de horror-psicológico como eu, principalmente pela força das imagens. Pesquisando, descobri que De Palma, lançou dois anos depois, outro trabalho com a mesma temática (telecinésia e fenômenos paranormais) sendo A Fúria, o dito cujo. Infelizmente, na minha locadora não tinha o VHS do filme, mas a sorte sorriu para mim uma semana depois, quando o canal Fox anunciou durante um intervalo comercial que o filme seria atração da sessão de suspense/terror que passava toda sexta-feira à noite no canal.

No filme, Peter Sandza (o grande Kirk Douglas) é um agente da CIA que tem um filho paranormal, Robin (o canastra Andrew Stevens) que está de partida para estudar em uma escola americana especializada, sob os cuidados do amigo Childress (o notório diretor e ator John Cassavetes). O problema é que Childress é um traidor que organiza um atentado para matar Peter, pois deseja utilizar a telepatia de Robin para fins militares. Escapando ileso do ato, Peter conhece Gillian (Amy Irving, a sobrevivente de Carrie) uma jovem com os mesmos poderes do seu filho e que ajudará Peter na sua jornada de resgate do primogênito.

Neste dia, o meu primeiro contato com A Fúria foi amor à primeira vista, algo que persiste até hoje quando revejo. Mesmo irregular em sua narrativa, é carregado de uma precisão notável por parte do seu diretor em criar momentos marcantes que entrariam com facilidade no rol de grandes cenas no cinema visual. Por isso, resolvi fazer um advogado de defesa deste subestimado filme no Cine Set e começo fazendo a primeira ponderação: Como um filme pode ser ruim, se ele tem um punhado de cenas impactantes e poderosas? Logo, seguem seis argumentos de defesa em relação a este pobre réu, para ele ser visto com outros olhos perante o júri cinéfilo, no caso o nobre leitor do Cine Set:

  1. Um thriller conspiratório de elementos psicanalíticos

Um bom thriller de suspense precisa ser envolvente, principalmente na construção de personagens e atmosferas. A Fúria oferece isso em ótimas doses. Apesar das influências diretas e indiretas a Hitchcock – temos O Sabotador (1942) e Intriga Internacional (1959) – De Palma permeia todo o trabalho dentro de uma estrutura frenética que mantém o forte comentário político-conspiratório sobre a exploração das pessoas pelas instituições governamentais junto a temas psicanalíticos recorrentes na sua filmografia. Por mais que o roteiro de John Farris ofereça ao público um enredo eficiente de paranormalidade, o coração pulsional dramático do filme se concentra na conflituosa relação edipiana entre pais e filhos, a qual o cineasta reveste com a habitual temática de obsessão e tragédia, elementos já presentes em Trágica Obsessão (1976) e em Carrie. Se nos filmes de Spielberg, a figura paterna ausente é sempre vista como idealizada, nos filmes De Palma ela é sentida como uma presença física destrutiva.

  1. Os Telepatas de Brian De Palma

Se Corpo Fechado (2000) de Shyamalan é uma homenagem de carne e osso aos filmes de super-heróis, pode-se dizer que A Fúria é uma releitura real dos quadrinhos de X-Men, mudando apenas os mutantes por telepatas, mas conservando o texto político-conspiratório. Em outras palavras antes de X-Men – O Filme (2000) de Bryan Singer, De Palma ensaiava sua versão B assustadora e crua. Há vários elementos semelhantes: uma escola de telepatas no estilo da escola de Xavier; amizade de Childress e Peter é similar a Xavier e Magneto; jovens que precisam lidar com seus poderes e Gillian lembra bastante Jean Grey. É claro que a grande diferença é que em A Fúria tudo é sombrio. Se você ficou frustrado com X-Men – Apocalipse (2016) dê uma chance a este réu que você não se arrependerá.

  1. Kirk Douglas e John Cassevetes

São raros os filmes dentro do gênero de suspense que conseguem reunir nos papéis de herói e vilão, duas grandes personalidades do cinema americano. De Palma brinca com nossa perspectiva neste quesito. Douglas em atuação brilhante e forma física invejável (tinha 62 anos na época) constrói um herói que aprendemos a respeitar apenas pelo olhar. Do outro lado, temos John Cassavetes que encena o vilão de traços maléficos – próximo a um vampiro que manipula e transforma suas vítimas em monstros – e ambivalentes, semelhante ao seu personagem de O Bebê de Rosemary (1969). Existe a lenda de bastidores que Cassavetes odiou trabalhar no filme, mas essa história é melhor deixar de lado caro júri.

  1. Um filme, vários gêneros.

A Fúria é uma obra exótica e estranha. Trafega em diversos gêneros cinematográficos com elementos que vão do suspense fantástico, passando pela ação e comédia até atingir o horror puramente explicito. É interessante que De Palma orquestra situações que vão do cinema mainstream, principalmente pelo roteiro que valoriza o texto dramático a situações que casam perfeitamente com o formato de um cinema B – a cena final é o auge deste estilo. Isso deixa o resultado final, algo instigante.

  1. O cinema de excessos

Não vou negar caro júri, que o réu apresenta um ritmo irregular (os trinta minutos iniciais são um tanto monótono), só que à medida que delineia as duas tramas e as aproxima, a atmosfera se torna mais dramática, elaborada e que trabalha a tensão crescente. Há pelo menos umas quatro sequências empolgantes em A Fúria. A da fuga de Gilliam é puro deleite visual, filmada toda em câmera lenta, sem diálogos, apenas pontuada pela ótima trilha sonora de John Williams (outro que na década de 70 encontrava-se no auge das composições) que ganha dramaticidade através de um mero ruído da freada de um carro. Se Zack Snyder utiliza o slow motion para efeitos estéticos, De Palma o utiliza para um domínio absurdo de cena. Curiosamente é a partir desta cena que o filme, de um suspense clássico, vira um horror bruto. Todos os excessos oferecidos pelo filme combinam perfeitamente com suas cenas.

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  1. O Final Apoteótico

A cena final tem uma conotação ambivalente: ao mesmo tempo pode ser vista pelo júri como uma caricatura exagerada ou como uma representação visual coerente do enredo. Pessoalmente, ela combina com o terço final onde o suspense é todo lapidado em um horror explosivo e agressivo. Ela representa dentro da narrativa, a maturidade de Gilliam em controlar os seus poderes – até então uma jovem insegura e medrosa – enquanto visualmente é bombástica: toda violência e dor que a personagem sofreu durante o filme, explode em imagens viscerais e sanguinolentas, dignas do italiano Lucio Fulci. Funciona como catarse para o cinema de excessos citado no outro tópico e vale observar que o frame final é filmado com extrema criatividade através de diferentes ângulos. Tarantino repetiu esta mesma abordagem em À Prova de Morte (2007).

Por isso, membros do júri, apesar das suas falhas e deslizes, A Fúria é um belo trabalho De Palma que na época reinava absoluto no universo. Não tem a economia e a concisão narrativa do sucesso Carrie, mas é repleto de momentos empolgantes em uma trama fantástica de suspense. Por isso, por gentileza, jamais deixem que ele adentre na cadeia cinematográfica de piores trabalhos do cineasta.