Fazer cinema não é fácil. Claro que toda arte exige disponibilidade, sensibilidade, talento, entrega, e tem os seus desafios próprios, mas o cinema mostra-se como uma das mais difíceis pelo fato de exigir um elemento (quase) fundamental: dinheiro.

Sim, cinema é uma arte cara, e é muito difícil driblar esse fator tão importante.

Equipamentos são caros, o aluguel de locações é caro, os gastos com gasolina e alimentação são altos, além dos custos dos cachês dos profissionais envolvidos. Colocando tudo isso na ponta do lápis é possível ver como é grande o desafio para quem quer realizar um cinema pelo menos próximo do profissional, e como são difíceis as condições encontradas por aqueles que se aventuram na heroica missão que é fazer um filme.

Fazer cinema no Brasil é ainda mais difícil. Mesmo que o número de produções tenha aumentando comparado com os das décadas anteriores, pouquíssimos são os filmes que conseguem realizar uma boa carreira no circuito comercial. Quer dizer, se um filme independente entrar nesse circuito, já pode se considerar vitorioso, pois exigir que ele consiga algum dinheiro através de bilheteria… bem, isso é um próximo passo, ainda distante, a não ser que você tenha certos nomes no seu elenco: Fábio Porchat, Leandro Hassum, Paulo Gustavo, Wagner Moura, Fernanda Montenegro.

Imagina, então, como é fazer isso no Amazonas! Certamente um desafio ainda maior, tendo em vista que o estado se encontra alguns anos atrasado em relação aos produtores mais bem sucedidos do Brasil.

Se tudo é tão difícil e por aqui as dificuldades são ainda maiores, como que são produzidos os filmes locais?

Logo da Ancine - Agência Nacional do Cinema

Editais públicos

Uma ferramenta sempre utilizada pelos realizadores brasileiros é o edital público para a realização dos seus trabalhos. Depois do Governo Collor, que extinguiu a Embrafilme e criou um verdadeiro limbo para a produção cinematográfica brasileira, o governo federal voltou a criar maneiras para fomentar a produção, e muito disso passa pelo serviço prestado pela Ancine e por editais da Petrobras, BNDES, dentre outros. Ano após ano, os realizadores parecem cada vez mais familiarizados com os mecanismos de fomento e suas exigências, e novos nomes conseguem realizar os seus longas-metragens.

Trazendo para Manaus, essa realidade ainda está no seu estágio inicial. Em anos anteriores, os editais de fomento oriundos do Governo do Estado e da Prefeitura priorizavam outras vertentes artísticas, como teatro, dança, música, artes visuais, e o cinema ocupava papel bastante secundário.

A chegada e consolidação do Amazonas Film Festival (AFF) trouxe uma nova realidade para o cinema local. Se antes a produção era bastante reduzida, realizada apenas pelos “mais fanáticos”, o festival fez com que novos realizadores despertassem o seu interesse em produzir os seus próprios filmes, de terem o seu nome associado a um grande festival nacional e começassem a pensar mais seriamente na ideia de viver de cinema. A cada ano, mais filmes amazonenses eram inscritos no festival, o que acabou dando origem a uma nova leva de realizadores iniciantes.

Após as primeiras edições do evento, o festival lançou o Concurso de Roteiro, que premiaria o melhor trabalho com um prêmio de R$ 100.000,00, e o curta vencedor ainda seria exibido na categoria Mostra Brasil da edição do ano seguinte. Tal premiação cumpriu papel importante para o cenário local, dando suporte para a realização de curtas-metragens como “Nas Asas do Condor”, de Cristiane Garcia; “Um Rio Entre Nós”, de Sérgio Andrade; “Rota da Ilusão”, de Dheik Praia; “Sandrine”, de Elen Linth; “Strip Solidão”, de Flávia Abtibol.

Apesar de cumprir papel importante, tal prêmio não mudou efetivamente o mercado amazonense, visto que poucos nomes conseguiram vencer a concorrência, enquanto muitos projetos permaneciam sem dinheiro para serem colocados em prática.

Em 2013, a Secretaria de Estado da Cultura, através do prêmio Proarte (Programa de Apoio às Artes) modificou um pouco esse cenário, investindo R$ 580 mil em cinema e vídeo, dividindo a categoria em 6 prêmios de R$ 40 mil para curtas-metragens de ficção; 6 prêmios de R$ 25 mil para curtas-metragens de documentário e outros 5 prêmios de R$ 38 mil que seriam divididos entre webséries, festivais, feiras, mostras, e outros. A novidade incitou os realizadores, que, finalmente, tiveram um estímulo maior por parte de um edital local para o fomento de novas produções.

Porém, o atraso para a divulgação dos selecionados (a lista só foi divulgada em março de 2014) e a falta de continuidade das ações da Secretaria de Cultura (em 2014, por exemplo, não houve Proarte e não há previsão que o edital volte a ser lançado em 2015), ainda mais se for levado em consideração os constantes cortes de gastos da administração de José Melo, fazem com que o importante investimento realizado em 2013 surja como um ato isolado, que não gerou procedentes, apenas cumprindo um papel de apoio imediato.

Quem promete dar um passo adiante nesse sentido é a Manauscult, que, em março do ano passado, lançou o Edital Prêmio Manaus de Audiovisual, que distribuiu R$ 300 mil em 4 prêmios de R$ 10 mil; 4 prêmios de R$ 20 mil; 3 prêmios de R$ 30 mil e 2 prêmios de R$ 45 mil. O edital de 2015 está previsto para ser lançado entre os meses de setembro ou outubro, e como os prêmios para as demais categorias (teatro, dança, música, etc.) tiveram um aumento em relação ao ano anterior, é de se esperar que os valores para o cinema também tenham acréscimos.

Os editais da prefeitura e do governo cumprem papel fundamental para os realizadores audiovisuais amazonenses, principalmente àqueles que estão realizando os seus primeiros filmes, pois os editais do governo federal exigem projetos, e nomes de maior relevo no cenário regional, que já possuam reconhecimento na área, com prêmios e participações em festivais importantes, para assim dar um próximo passo.

Um exemplo disso é Sérgio Andrade, que já havia participado de alguns festivais, quando foi contemplado com o curta-metragem “Cachoeira” pelo Edital de Curtas 35mm do Ministério da Cultura. Depois, o realizador foi o primeiro da região Norte a vencer o Edital de Longas de Baixo Orçamento do mesmo órgão para a realização de “A Floresta de Jonathas”. Seu novo filme, “Antes o Tempo Não Acabava”, ainda inédito, venceu os editais Petrobras Cultural para longas, Prodecine 4 e FSA Ancine.

Apesar de ser uma iniciativa que não contempla todos os realizadores e, muitas vezes, afasta os artistas que não tem familiaridade com a linguagem de projetos técnicos, é importante se manter atento a tais editais, como explica o produtor cultural Paulo Cézar Freire: “Eu diria que editais públicos, hoje, são os únicos recursos para todos os produtores culturais de Manaus, especialmente no audiovisual, infelizmente. Como não houve vontade política para criar e pôr em prática leis de incentivo, vivemos de pires na mão em busca de ‘migalhas de recursos’ para realizar filmes. Fora isso existem os editais federais como o PRODAV, que utiliza o sistema de cotas para as regiões, a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. Porém, é bom deixar claro que muitos artistas deixam de participar por não saberem como trabalhar com as leis e tampouco inscrever seus projetos. Isso se deve ao fato de que estamos muito atrasados em relação a outras capitais, que já realizam suas obras por meio de leis de incentivo há mais de 20 anos”.

O cineasta Sérgio Andrade também considera importante a política de editais, embora acredite que ajustes ainda são necessários: “O cinema no Brasil é subsidiado pelo Governo e por leis de incentivo municipais, estaduais e federais; em algumas esferas, isso funciona meio precariamente, mas em outras tem impulsionado muito o cinema brasileiro. Há ainda muita indefinição no Brasil quanto a um cinema de origem privada, como nos EUA, acho que o apoio público é a saída e pode ainda melhorar. Para a região Norte, a política de regionalização é providencial”.

Emerson Medina, realizador de cinema amazonense

Como é que se faz, então?

Para muitos realizadores, obter dinheiro através de editais públicos para a realização de seus filmes é a exceção, não a regra. O desejo de colocar em prática um roteiro em que se acredita muito na ideia, acompanhado de amigos que partilham da mesma “fé”, muitas vezes é o suficiente para se aventurar a realizar um filme.

Um exemplo disso é Emerson Medina, codiretor do curta-metragem “Et Set Era”, vencedor do AFF 2012, na categoria Mostra Amazonas, que produziu o seu filme sem recursos públicos, contando com a parceria de amigos,  produtoras e recursos próprios, claro. Depois dessa experiência, Medina criou com esses mesmos amigos o “Planos em Sequência”, um grupo que, através de iniciativa própria e busca por parcerias privadas, vai em busca da realização dos seus produtos.

“O edital é uma ferramenta importante, mas ele não contempla todo mundo, então vai fazer o quê? Cruzar os braços, chorar? Com todas as restrições, o Planos em Sequência lançou cinco curtas em 2013, três foram selecionados pro Amazonas Film Festival, sendo dois premiados. Chega uma hora que tem que por a mão na massa. Fazer parceria com produtoras e outros serviços e pau na máquina”, explica Medina. Nessa leva de filmes estava “Germes”, de Rafael Lima, vencedor do AFF 2013.

O novo filme do grupo, “Nascer, Crescer e Negar”, ainda inédito, com direção de Medina, foi produzido da mesma maneira, graças à articulação do Planos em Sequência com a Sambatango Filmes. “O único edital que ganhei foi do AFF de 2007, pelo roteiro de ‘Criminosos’, que passei pro Sérgio Andrade e ele dirigiu. Os demais projetos do Planos em Sequência são com recursos próprios e apoios”, explica.

Mas se engana quem pensa que vencendo um edital público os problemas financeiros estão resolvidos. Mesmo contando com um dinheiro garantido, os gastos com a produção são altos e não asseguram uma tranquilidade completa, como explica Sérgio Andrade: “Orçamento confortável nunca tive, mas para a região Norte tivemos o primeiro Edital de Baixo Orçamento para longas do Ministério da Cultura com ‘A Floresta de Jonathas’, cuja utilização financeira foi bem planejada e executada, o que possibilitou remunerar a todos de maneira justa e cumprir com todas as suas etapas. Não foi confortável, mas foi equilibrado. Fazer cinema de qualidade e profissional é caro e ter conseguido o recurso de um edital foi uma vitória”.

Glauber Rocha

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, já era”

Mas uma questão que passa por todas as produções é o conflito de tentar realizar um trabalho com o maior apuro possível, tendo pessoas gabaritadas, especializadas em suas funções, realizando algo de alto nível, ao mesmo tempo garantindo que isso não ultrapasse o orçamento do projeto. Tal equilíbrio é um grande desafio, que até mesmo produções maiores enfrentam com dificuldade. Se não se tem dinheiro, como se concilia isso? E se os equipamentos são caros, até que ponto o “jeitinho”, o improviso, não interfere no resultado final? Até que ponto o dinheiro (ou a falta dele) interfere na criação de um estilo, de uma linguagem?

“É preciso transitar entre o perigo da precariedade quando não se tem dinheiro, mas também é preciso driblar o mau gosto, o exagero e o artificialismo quando há recursos. A arte do cinema, quando exercida de fato, neutraliza esses dois perigos, e isso já pode ser identificado no roteiro. Se não tem dinheiro, simplifique e seja criativo no roteiro e os resultados virão, com dinheiro ou sem”, explica Andrade, que emenda: “Em cinema, para mim, todas as funções têm que ser exercidas por profissionais especializados e de comprovada capacidade; no entanto, nos novos tempos temos que adaptar as nossas expectativas profissionais a certas realidades orçamentárias; eu encontro esse dinamismo e abertura tanto em profissionais locais quanto de outros estados, com mais experiência”, finaliza.

Paulo Cézar Freire acredita que o pagamento dos profissionais envolvidos na produção é uma prioridade, que deve sempre ser buscada pelos realizadores: “Sem dinheiro suficiente para contratar profissionais e atores, locar equipamentos primordiais de captação de imagem, som, ou seja, ter tudo à disposição para o realizador pensar somente no que vai ser filmado, fica muito mais complicado de ter um produto final com a qualidade almejada e suficiente para ser apresentado em outras praças. Pedir para um profissional filmar, editar, atuar de graça é falta de respeito com o mesmo. Isso não pode mais ser a alternativa pra fazer um filme. Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, como pregava Glauber Rocha, já era! Estamos no décimo quinto ano do século XXI e ainda pensando como se estivéssemos nas décadas de 1970/1980. Naquela época improvisar era ser criativo, de vanguarda e, também, a única forma de produzir.  Hoje, quando buscamos uma empresa produtora para ser parceira temos que ter em mente que uma empresa vive de lucros e que não faz sentido para ela investir num filme sem perspectiva de retorno”.

Já Medina, que tem um modo de trabalho um pouco diferente de ambos, acredita que a força de vontade dos amigos que estão realizando a obra é um fator que fala mais alto, e que, com organização e um objetivo em comum, é possível realizar um trabalho de qualidade, mesmo com dificuldades: “Até hoje as produções que fiz ou participei não compensaram o talento e a generosidade de profissionais que abraçaram o projeto. Ainda assim a dedicação de todos não comprometeu o resultado. A gente conta com a generosidade desses talentos e eles, imagino, vislumbram potencialidades no projeto. Acho que criatividade resolve 90%. Depende do quanto você está disposto a se distanciar da ideia original. Por exemplo, você pode escrever pensando em Shakespeare, mas, por restrição, acaba adaptando pro cangaço. Vai do que você quer abrir mão. A gente viabiliza viagem, festão de aniversário, curso, etc. Com audiovisual é o mesmo. Fácil não é, mas é possível. E adapte o projeto ao bolso. Reduza o número de personagens, locações, logística ao essencial”.

Eleição Concultura 2015 - Paulo Cezar Freire

Lei de Incentivo à Cultura/Parcerias privadas

Nos estados brasileiros com resultados mais satisfatórios em cultura é comum, e já há alguns anos, a existência de uma lei governamental e/ou municipal que destine uma determinada porcentagem do faturamento do estado e/ou município ao fomento de produtos culturais através de renúncias fiscais. Essa lei ainda não existe no Amazonas, e muitos produtores culturais acreditam que essa seria uma iniciativa determinante para um salto da produção cultural amazonense, como é o caso de Paulo Cézar Freire:

“Os gestores culturais do nosso Estado esqueceram-se de duas coisas: criar leis de incentivo para tornar a produção cultural do Amazonas ainda mais forte e atrair o empresariado amazonense para fazer parte deste processo. Ouvir de um diretor de marketing de uma grande empresa de telefonia, como eu ouvi, que eles tinham dinheiro para investir em produtos culturais aqui do nosso Estado e da nossa cidade, desde que fosse por meio de leis de incentivo municipal ou estadual, foi um grande golpe na minha vontade de realizar. Saber que esses recursos iam ser devolvidos aos cofres da empresa porque ainda estamos atrasados em relação às outras 26 capitais que dão incentivo para o empresário investir em cultura, é o mesmo que nadar e morrer afogado na praia. Saber que um filme poderia ter sido melhor produzido, finalizado, distribuído se tivesse mais recursos é um absurdo! Isso tem que mudar!”, explica.

Freire ainda completa: “Nenhuma capital do País vive somente de leis municipais para incentivar a cultura. Mas, com certeza, em Manaus, causaria um grande impacto social a aprovação da lei municipal de incentivo à cultura. Com mais recursos, produtoras independentes e realizadores poderão realizar projetos audiovisuais maiores e mais bem acabados, com maior competitividade nos mercados nacional e internacional. A lei já existe, está sob análise para ir à votação na Câmara Municipal e posterior regulamentação e ser sancionada pelo prefeito. É preciso uma conscientização e mobilização de todos os segmentos para esta conquista. Não é mais possível ficar esperando que algo aconteça sem a participação de todos”.

Enquanto se espera pela regulamentação da lei de incentivo, uma realidade que certamente traria benefícios aos realizadores audiovisuais seria uma relação mais próxima com a iniciativa privada.

Sérgio Andrade, diretor de A Floresta de JonathasQuem trabalha no ramo sabe que para os empresários não parece interessante ter a sua marca associada a um filme amazonense, mesmo que ele participe de festivais importantes e ganhe prêmios, afinal tais filmes ficam restritos a este universo e não são exibidos em circuito comercial, onde poderiam ser apreciados por um público maior, que poderia ver a marca das empresas patrocinadoras. Talvez essa realidade mude com o passar dos anos, visto que em 2014, “A Floresta de Jonathas” estreou no circuito comercial em algumas capitais brasileiras, embora esse ainda seja um fato isolado, uma exceção que comprova a regra.

Tal fato faz com que Andrade tenha uma postura crítica sobre a postura da iniciativa privada como apoiadora da arte produzida no Amazonas: “O envolvimento privado ainda é tímido, mal informado e descontinuado. Sempre digo que o PIB e a arrecadação do Amazonas é maior que Pernambuco, com a Zona Franca e tudo o mais, e ainda assim o cinema pernambucano tem mostrado competência e governança em termos de incentivos e editais públicos e de dinheiro privado. Que mal faria reverter 0,3% que fosse para a Cultura do AM, advindos de cotas empresariais e públicas, por lei? Nosso imaginário riquíssimo e nossas locações dariam show em uma profusão de filmes. Também é preciso investir mais na formação”.

No momento, Emerson Medina, junto com o Planos em Sequência, está produzindo a websérie de Antônio Carlos Jr. “Largo São Sebastião”, dessa vez com o auxílio de editais públicos. Apesar de ser um projeto que ganhou importantes editais, ele ainda parece ser incapaz de chamar a atenção de empresas a ponto de receber patrocínio: “Recentemente fiz um comentário da websérie do Largo estar aberta a parcerias, num grupo do Whatsapp que tem empresários de bebidas e alimentos. Silêncio total. Eles desconhecem. Nossas janelas são muito de nicho ainda. No imaginário deles ainda fazemos produções engraçadinhas, quando, na verdade, já fazemos longas, temos curtas nos festivais do Brasil e do exterior. Acho que talvez um trabalho de aproximação com as câmaras setoriais ajudaria a apresentar a nossa produção”.

Olhando para o futuro com otimismo, é possível vislumbrar, quem sabe até num espaço de tempo relativamente curto, novas saídas (financeiras) para o cinema amazonense, seja através da regulamentação da Lei de Incentivo à Cultura ou em editais com prêmios maiores e para mais realizadores.