Em um texto essencial sobre a natureza do documentário, o teórico Bill Nichols fala sobre a “voz” desse tipo específico de produção fílmica. Segundo ele, os documentários passam por um processo evolutivo (ou, melhor dizendo, de transformação) no qual a tal voz, ou seja, a maneira como se constroem as asserções no filme, podem se valer de diversas estratégias. Se formos pensar no documentário de Tarso Araújo a partir do que Nichols propõe, podemos pensar que o que o filme diz e como diz parte de um discurso bem delineado em nível de apresentação ao espectador ao recrutar vozes específicas. Sua voz sabe muito bem o que quer dizer, mas o que se sacrifica pelo caminho nesse processo eventualmente prejudica a estrutura do filme para além de sua temática.

Ilegal acompanha o drama de mães cujos filhos sofrem de uma rara condição que os faz ter numerosas crises de epilepsia. Ao longo da busca por um tratamento, esses pais esbarraram num medicamento composto a base do canabidiol, substância encontrada na Cannabis Sativa, a maconha. O medicamento, proibido no Brasil, vem sendo traficado para o uso medicinal por esses pais desesperados, uma vez que, de fato, chegam a zerar os ataques epilépticos das crianças. Num próximo passo, mães como Kathiele Fischer, cuja filha teve o desenvolvimento sensivelmente prejudicado pela grande quantidade de convulsões antes de iniciar o tratamento com o canabidiol, lutam na justiça pelo direito de importarem o medicamento e, se possível, tornar viável a produção dele no Brasil.

Tratando-se do primeiro documentário com produção vinculada à revista Super Interessante, a expectativa era de que a produção equilibrasse o drama humano com informações de apuro científico aprofundado. No entanto, o filme foca em suas personagens, cujas histórias de vida são, de fato, tocantes, mas afrouxa-se quando parte para os depoimentos de pesquisadores e especialistas. Uma vez que até a pesquisa do uso da maconha e derivados com fins medicinais é dificultada no Brasil, essas vozes são encobertas em diversos momentos. Mesmo quando pesquisadores de outros países entram em cena, essa falta de atenção aos que lidam com os estudos é minada gradualmente, preferindo-se a construção de um discurso que (com razão, no final das contas) rechaça a burocracia e a falta de sensibilidade dos conselhos médicos e outras instituições em avaliar o uso das substâncias derivadas da maconha como remédio.

A premissa que embasa toda a estrutura da abordagem do tema em Ilegal é clara: pais e filhos sofrem por conta da doença desses últimos, que pode ser significativamente controlada com um medicamento já produzido e comercializado em outros países, mas que aqui é proibido, e é óbvio que esses pais devem ter o direito de tentar melhorar a qualidade de vida de seus filhos experimentando todos os medicamentos possíveis. O chocante momento em que o documentário registra uma crise epiléptica da pequena Anny é o suficiente para convencer o público disso. O sofrimento físico e psicológico da criança é explícito, e só de pensar que ela chegou a passar por aquilo num intervalo de duas em duas horas no decorrer de um dia, como a mãe relata no filme, é de partir o coração. Nesse sentido, não há dúvidas da boa vontade de “Ilegal” em abordar um tema que permaneceu adormecido por muito tempo, e cuja discussão e posicionamento em nível político no Brasil poderiam ter, literalmente, salvo vidas nesse meio tempo.

Esse é o maior trunfo do filme: lutar pelo reconhecimento das possibilidades que a planta pode trazer em caráter medicamentoso. Em dado momento, os pais de Anny mostram uma série de gráficos que registravam a quantidade absurda de crises epilépticas da criança, e parecem claros os benefícios do canabidiol quando as tabelas mais recentes mostram a quase ausência das crises após o uso do remédio. É uma luz no fim do túnel, quase um milagre, e é essa a ideia que Ilegal vende.

Infelizmente, a insistência nessa premissa baseada no drama pessoal torna o filme, ironicamente, raso. Não se instiga uma discussão sobre separar o joio do trigo quando se fala da maconha, e o saber científico é eclipsado desse discurso, resumindo-se a mostrar a comunidade de pesquisadores de mãos atadas por não poder pesquisar o suficiente sobre a maconha, como se o uso dos remédios por parte dos personagens fosse o suficiente para comprovar todos os benefícios, e como se essa comunidade científica não fosse altamente importante para criar novas drogas e estudar novos tratamentos. Ao invés de construir o discurso “pais têm direito de comprar medicamentos devidamente testados, estudados e cujos efeitos e reações adversas são conhecidos”, o filme limita-se a dizer “pais têm o direito de comprar medicamentos”. Lembrando novamente que “Ilegal” é um documentário vinculado a uma publicação que se diz científica, essa é uma posição um pouco decepcionante, principalmente para quem acompanhou a Revista Super Interessante desde a época em que suas matérias eram tão densas que se tornavam um desafio para o leitor menos inteirado nos temas que ela abordava.

Outra confusão que surge na estrutura do filme é quando as famílias que acompanhamos por boa parte da projeção passam a dividir espaço com personagens que não tem o mesmo foco específico delas. Essas novas figuras são exploradas de maneira bastante superficial, principalmente se levarmos em conta suas situações específicas, tal como a da mulher que busca a liberação de um remédio derivado de outra substância da maconha, o THC, que é justamente aquela responsável pelo surgimento do vício.

Pouco ou nada se fala das consequências sociais desse tipo de liberação em nível social, o que em parte dependeria de valorações morais variáveis, mas muito pior que isso, não se fala de possíveis reações adversas do uso desses medicamentos pouco pesquisados por conta do tabu que envolve a Cannabis Sativa. Se pensarmos nas poucas e recentes pesquisas que ligam o uso prolongado da maconha a consequências negativas para o corpo (tal como o álcool e o cigarro, diga-se de passagem), parece estranho construir um filme que frisa os benefícios para a saúde sem se preocupar se há algum malefício também. Quando a discussão envereda para o debate político, misturando liberação para uso medicinal com uso recreativo, o filme perde as rédeas por completo. É muita coisa para abordar em pouco tempo!

Independente do que o espectador pense sobre a maconha, Ilegal acerta ao propor, ainda que com todos os problemas expostos acima, um olhar multifacetado para a maconha. Ver a planta apenas como fonte de comportamentos fora do padrão social “aceitável” é um posicionamento deveras raso quando se percebe as potencialidades do uso medicinal, principalmente para as graves doenças retratadas no documentário. Nesse sentido, o filme serve apenas de aperitivo para a discussão quando não foca no direito à pesquisa científica e nas estratégias de tornar um produto que não envolve patente atrativo para o mercado farmacêutico, que é o que poderia de fato agilizar a liberação dos medicamentos para um uso mais seguro e eficaz.

Nota: 6,0