Há um entendimento entre os cinéfilos que acompanham a produção latino-americana de que a Argentina faz o cinema mais importante da América do Sul. Não se trata, claro, de diminuir as conquistas de países como o Brasil ou o México, que também produzem filmes e diretores notáveis (o último, por sinal, tem dominado as premiações do Oscar nos últimos anos), mas de reconhecer que a consistência e a alta qualidade do cinema argentino colocam nossos hermanos numa clara posição de liderança no continente.

Se você ainda não está familiarizado com títulos como Nove Rainhas (Fabián Bielinsky, 2000), Lugares Comuns (Adolfo Aristarain, 2002) e Relatos Selvagens (2014, Damián Szifron), ou com cineastas como Fernando Solanas, Carlos Sorín e Leopoldo Torre Nilsson, uma excelente porta de entrada para conhecer – e se apaixonar por – o cinema argentino são os filmes daquele que é considerado o maior diretor em atividade no país atualmente: Juan José Campanella. Em obras como O Segredo dos Seus Olhos (2009), O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (1999) e O Filho da Noiva (2001) – todos, por sinal, em parceria com o ator que é o grande emblema do cinema argentino, Ricardo Darín –, Campanella produz combinações incrivelmente harmoniosas de engenho narrativo, domínio técnico e ressonância emocional, em gêneros que vão do thriller ao desenho animado com o mesmo vigor e imaginação. O que você está esperando?

O começo: a ponte Argentina-Estados Unidos (1979-1997)

Campanella nasceu em Buenos Aires, em 1959. Filho de uma família afluente, o futuro diretor tentou primeiro a faculdade de engenharia, antes de um evento, à falta de um termo melhor, pivotal: assistir a All That Jazz: O Show Deve Continuar (1979), o grande musical de Bob Fosse, que marcaria o fim de uma era para o gênero. Campanella viu o filme no dia em que faria a matrícula no quinto ano do curso: em vez disso, ele foi para os Estados Unidos estudar artes e tentar a sorte no cinema.

Ele já havia feito um curta, Prioridad Nacional, no mesmo ano, mas sua primeira incursão séria na Sétima Arte foi o longa Victoria 392 (1984), um thriller cheio de ironia, que inaugura a colaboração entre Campanella e o roteirista Fernando Castets, que aqui também atua como co-diretor. Outra estreia no universo campanelliano (inventei essa) é a do ator Eduardo Blanco, que protagoniza o filme.

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A estadia americana foi fundamental para estabelecer uma ponte com Hollywood e dar ao diretor a oportunidade de conhecer técnicas e equipamento de ponta, que ele usaria para dar uma “embalagem” distinta a seus filmes argentinos. Em 1993, ele teria sua primeira experiência na TV daquele país, dirigindo um episódio da série Lifestories: Families in Crisis (1993), da HBO. Essa dupla militância levaria o cineasta a participar de algumas das séries mais importantes das últimas décadas, como Law & Order, House, 30 Rock e Halt and Catch Fire, um aprendizado decisivo, segundo o diretor, por apresentar métodos de produção em grande escalas e com estrelas, muito diferentes do cinema argentino, e que dariam o estofo necessário a projetos longos, caros e extenuantes, como a animação Um Time Show de Bola (2013).

Campanella, inclusive, já declarou em entrevistas que só pretende trabalhar nos Estados Unidos em séries, que para ele são narrativamente muito mais ousadas e interessantes, sem o enfoque excessivo em quadrinhos e games e a busca pelo menor denominador comum inerentes a praticamente todos os grandes estúdios. Mas, em sua primeira década de EUA, o diretor chegou a dirigir dois longas-metragens, hoje esquecidos, e que nunca ganharam distribuição no Brasil: o drama The Boy Who Cried Bitch (1991 – com os muito jovens Adrien Brody e Jason Biggs no elenco) e o neo-noir Love Walked In (1997). Ambos os trabalhos mostram o diretor afiando suas ferramentas e chegando à mescla de sofisticação, despojamento e comoção da sua melhor fase, mas só valem ser vistos por isso mesmo: por apresentar a evolução de JJC.

Retorno ao país: a grande parceria com Ricardo Darín (1999-2009)

Desapontado com a muda recepção a seus filmes americanos, Campanella voltaria à Argentina no fim dos anos 90, encontrando no antigo parceiro Castets um dos elementos decisivos para seu amadurecimento como diretor. O outro viria no nome e estampa de Ricardo Darín, que Campanella conheceu ainda na década de 1970, quando estudava engenharia. Com mais Eduardo Blanco a bordo, o grupo criaria três filmes, que colocariam o nome de todos eles no mapa, e ajudariam a cimentar essa impressão recorrente de excelência que temos do cinema argentino: O Mesmo Amor, a Mesma Chuva (1999), O Filho da Noiva (2001) e Clube da Lua (2004).

O primeiro é um dos grandes clássicos de Campanella, um daqueles filmes diferenciados, onde desde os primeiros segundos sabemos que um artista em pleno domínio de seus poderes está no comando. Trazendo Darín como Jorge, um escritor frustrado que vive uma longa série de desencontros românticos com Laura (Soledad Villamil, numa dupla que voltaria com ainda mais força em O Segredo dos Seus Olhos), O Mesmo Amor, a Mesma Chuva é uma dramédia madura e melancólica, que olha para os enganos da vida com dureza, sem, no entanto, deixar de entrever a esperança ou reservar ternura para seus protagonistas. O sucesso da obra colocaria Campanella e companhia no radar internacional, e o filme ganharia prêmios nos Estados Unidos, na Espanha e no Brasil, entre outras praças.

O Filho da Noiva está no mesmo nível, ao menos para este escriba – muitos críticos, e certamente boa parte dos cinéfilos, que descobriram Campanella a partir desse filme, o considera ainda melhor. Darín desta vez é Rafael, o sobrecarregado dono de um restaurante, que vê seus relacionamentos desmoronarem enquanto toca, com lealdade, o decadente negócio da família, que lhe suga todo o tempo para as demais coisas da vida. Muito ligado ao pai (Héctor Alterio) e distante da mãe (Norma Aleandro), que desaparece sob o Alzheimer, Rafael tem duas experiências decisivas – o reencontro com um velho amigo, Juan Carlos (Eduardo Blanco), e um infarto quase fatal – que lhe obrigam a reavaliar completamente o rumo de sua vida. Delicado, melancólico e leve como O Mesmo Amor, O Filho da Noiva é outro triunfo na carreira de Campanella, aumentando sua reputação de leading figure do cinema argentino, e fazendo mais uma carreira respeitável em festivais.

Se Clube da Lua não repete os mesmos triunfos, cabe argumentar que filmes do nível de Chuva e Noiva já seriam raros em qualquer filmografia. Não tão afiado nos diálogos, ou comovente nas situações, Clube ainda assim é terno, sensível e agridoce como só raramente sói acontecer. Aqui, Darín é Ramón, sócio vitalício do clube Luna de Avellaneda, na província de mesmo nome em Buenos Aires. Com o declínio geral da vizinhança, mais as investidas imobiliárias, que pretendem transformar o Luna num cassino, Ramón e os últimos remanescentes dos dias de glória de Avellaneda fazem o que podem para deter o avanço das coisas – o leitor já deve imaginar o desfecho. Fechando numa nota alta uma parceria impecável, Campanella se afasta dos filmes por um período, para se reciclar nos Estados Unidos, dirigindo séries. O despojamento narrativo e o clima de tensão exigido por programas como Law & Order e House tornam-se ingredientes decisivos para a investida mais importante do cineasta.

O Segredo dos Seus Olhos (2009) é um daqueles filmes que impressiona à primeira vista – e as segundas, terceiras, quartas e sucessivas vezes só fazem revelar novas camadas, estatelar com o apuro técnico, explicitar a elaboração meticulosa de cada detalhe. Quem viu já está lembrando de cenas como o famoso plano-sequência do estádio de futebol, a leitura do trecho da despedida de Darín e Villamil, ou a virada final da trama, todos momentos antológicos do cinema argentino, e realizações formidáveis em qualquer filmografia.

Baseado num conto de Eduardo Sacheri, que também assina o roteiro (com JJC), Segredo embaralha passado e presente na história de Benjamín Espósito (Ricardo Darín), um investigador de polícia que resolve escrever um livro baseado no único caso que ele não solucionou: o do estupro e assassinato de Liliana Coloto (Carla Quevedo), em 1974. Ao mesmo tempo, o livro é uma forma de rememorar e acertas as contas de sua relação com Irene Hastings (Soledad Villamil), uma agente judiciária que foi uma de suas únicas aliadas na investigação (ao lado do amigo Pablo [Guillermo Francella, numa atuação também antológica]), e com quem ele vive uma relação amorosa correspondida, porém nunca consumada, desde então. Ainda ao mesmo tempo, o filme também é um painel amargo da dissolução moral da Argentina, dos anos finais do governo de Isabelita Perón e sua caça aos comunistas à sofrida liberdade após a ditadura de Jorge Videla.

Operando maravilhosamente em tanto níveis, O Segredo dos Seus Olhos fez uma carreira nunca menos que triunfal no circuito de premiações, culminando com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, o primeiro recebido pela Argentina desde A História Oficial (1985), de Luis Puenzo, e que tornou o país o único duplamente contemplado da América do Sul (já que o México, lá pela Central, vem marcando presença regular na premiação geral, e não só na categoria de filmes estrangeiros). As viradas surpreendentes da trama, a mão sutil e segura de Campanella e os trabalhos comoventes de Darín e Villamil tornam esse um filme imperdível, sob qualquer critério. Mas para onde ir, depois daqui?

Pós-Oscar: novos rumos (2013-hoje)

Coberto em aclamação, Campanella, porém, se viu obrigado a recusar vários convites para a televisão e o cinema, para voltar sua atenção a um projeto longo e difícil: Um Time Show de Bola (2013). Inspirado num conto do escritor e cartunista argentino Roberto Fontanarrosa, a animação era para ter sido a primeira colaboração entre JJC e Eduardo Sacheri, mas as dificuldades da produção, além do lento processo de animação, totalmente fora da estrutura dos grandes estúdios americanos, colocaram o projeto em desenvolvimento por sofridos cinco anos – e, a um custo de 21 milhões de dólares, na condição de ser a produção argentina mais cara de todos os tempos.

Apesar disso, o filme traz um resultado artístico consistente, mesmo se inferior à sucessão de clássicos desde 1999. A trama mostra os esforços de Amadeu (David Masajnik na versão original) para atrair a atenção de Laura (Lucía Maciel), sua grande paixão, projeto ameaçado pelo retorno de Grosso (Diego Ramos), jogador de futebol de renome mundial, que volta à cidadezinha onde sofreu a única derrota de sua vida, por culpa de Amadeu. Além de se acertar as contas com o rapaz, o rico e malvado Grosso também pretende tomar Laura para si e demolir a cidadezinha de do protagonista, cuja única esperança são os atletas de seu pebolim (ou totó), que ganham vida para disputar uma partida decisiva contra Grosso.

Curiosamente, apesar de uma cena marcante ambientada num estádio, e de um filme inteiro centrado na paixão pelo futebol, Campanella não é admirador do esporte. O que não o impediu de ir fundo no retrato dessa paixão, tão familiar a argentinos e brasileiros. A intensidade e o entusiasmo com que o diretor retrata as partidas, num dos primeiros filmes em grande escala a tratar da modalidade, é um diferencial da animação de Campanella, e certamente um elemento crucial na identificação das crianças da América do Sul e da Europa, mercados onde o desenhos fez bilheterias vultosas, diferentemente dos Estados Unidos, onde só ganhou distribuição neste ano. Simpático, vibrante e com uma produção de ponta, noutro grande feito para o cinema latino, Um Time Show de Bola marca a inquietação e a solidez das criações do diretor.

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Fechando mais um ciclo, o diretor voltou à direção de séries, estimulando produções originais em seu país (Entre Canibales, de 2015) e embarcando em projetos hypados, como a já citada Halt and Catch Fire, em 2014, e Colony, deste ano. Com novos projetos, sobre os quais ele vem mantendo segredo, o jovem mestre argentino (57 anos em 2016) vem recebendo prêmios e homenagens pelo mundo todo, como o Kikito de Cristal no Festival de Gramado de 2012, última vez que o diretor esteve em plagas brasileiras.

Sobre o enorme talento de Juan José Campanella, já não parecem restar dúvidas: a única questão é de que maneira ele pretende nos estatelar – e manter o cinema argentino em alta conta entre os apaixonados pela Sétima Arte – da próxima vez.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.