É uma surpresa feliz ver um filme como Legalize Já: Amizade Nunca Morre chegar às telas do Brasil. Nos dias sombrios que correm, em que o recrudescimento das opiniões e condutas do brasileiro médio é um fato escancarado e assustador, fica difícil imaginar encontrar no cinema a história de dois garotos da periferia, articulados, combativos, fãs de rap e consumidores assumidos de maconha, cuja aliança improvável resultaria numa das bandas mais marcantes do rock e da música de protesto do Brasil – Planet Hemp, a própria.

Pois esse filme existe, foi lançado e chegou até a Manaus. E quer saber? Legalize Já é entretenimento sólido, cativante, fugindo ao bom-mocismo típico das cinebiografias de artistas da MPB, ao mesmo tempo em que retrata, de forma mais eficaz e comovente que a maioria das obras do tipo, a empolgação juvenil de começar a fazer música e se descobrir artista.

Continuando a curva ascendente após a comédia Chocante (2017), onde membros de uma boy band oitentista lidavam com a decadência da meia-idade – um tema atípico o bastante para o gênero no Brasil –, a dupla de diretores Johnny Araújo e Gustavo Bonafé opta por atenuar as dimensões mais profundas e contraditórias de seus personagens, a fim de criar uma narrativa assumidamente fabular, alegre e inspiradora para o público jovem. E, no caminho, produzir uma bela homenagem à figura de Luís Antônio “Skunk”, o rapaz antenado e fã de música que inspiraria no futuro líder da banda, Marcelo D2, a vontade de fazer música.

Rio de Janeiro, Lapa, um incerto início dos anos 1990. Marcelo (Renato Góes, da série global Os Dias Eram Assim) vende camisetas no centro da capital carioca, e enche, nas horas vagas, um caderninho de letras com as muitas frustrações que um rapaz pobre, vivendo na informalidade e sem maiores expectativas, como ele próprio, inevitavelmente vivencia no Brasil. Cruzando o seu caminho vez por outra está Skunk (Ícaro Silva, mais lembrado pela participação em Malhação, mas que já defendeu Wilson Simonal com garra no musical S’imbora e faz aqui um trabalho inspirado e maduro), um jovem apaixonado por música, mas que, pela condição social e principalmente pelo tom da pele, é vítima de achaques constantes da polícia. Skunk tem o sonho de fazer música como seus heróis – Beastie Boys, Cypress Hill, Public Enemy (como é bom ver outros nomes que não os de rock e MPB num filme sobre música no Brasil) –, mas lhe falta algo, uma centelha, uma direção – que ele descobre por acaso ao levar, por engano, um caderno de letras de Marcelo, quando os dois se esbarram ao fugir da polícia.

Diferente do que se poderia esperar, Legalize Já não é a história do “mito” Marcelo D2 em construção – essa tentativa de idealizar o passado de um ídolo atrapalhou bastante, por exemplo, um filme tão recente quanto o bonitinho, mas sanitizado Somos Tão Jovens (2013), sobre Renato Russo. Mais cru e dolorido, sem esquecer o tom geralmente positivo e a sua mensagem de inspiração e empoderamento, Legalize está menos preocupado em mostrar como Marcelo, afinal, virou D2 do que em celebrar esse encontro que moldaria as vidas dos dois jovens, do início até o trágico desfecho – aqui não cabe spoiler, já que essa é a história que todos os admiradores da banda conhecem: depois de despertar a vocação artística do amigo, Skunk morreria de complicações decorrentes da AIDS, em 1994, meses antes do Planet Hemp gravar o primeiro LP.

E não só isso. Nas exortações constantes de Skunk sobre questionamento de padrões, subserviência e autoafirmação, o filme perpassa também as questões sociais que seriam um tema tão marcante na carreira da banda – e deixa bem claro o quão remotas pareciam as chances de dois rapazes pobres cantando sobre revolução social e uso livre de maconha, ao contrário do já citado Somos Tão Jovens (o filme brasileiro que mais se assemelha a esse aqui), que, entre outras coisas, edulcora a orientação sexual de Renato Russo.

Ainda assim, Legalize deixa de alçar vôos maiores por causa justamente das simplificações feitas para tornar a história mais acessível aos jovens, como parece ter sido a intenção dos realizadores. Marcelo e Skunk são personagens arquetípicos, como já se viu tantas vezes no cinema – o aprendiz “adormecido” e o professor que lhe reconhece o valor e transforma a vida –, e os diálogos do filme são excessivamente óbvios e explicativos. Apesar disso, o trabalho envolvente dos dois atores principais (principalmente Silva), a simplicidade eficaz do roteiro e a fotografia bem trabalhada, em tons de quase preto-e-branco, rendem um considerável mérito artístico para essa obra simpática e despretensiosa. Às portas do Brasil conservador e repressivo que se avizinha, aproveite a chance para conhecer a história de uma banda cujas letras pedindo justiça social e liberdade individual estão prestes a parecer relíquias de um país, senão exatamente com mais justiça, ao menos com maior liberdade de expressão.