Abraham Lincoln, o 16º presidente americano, liderou o país durante a sua Guerra Civil (1861-1865). No conflito, os estados do sul guerrearam contra os do norte por causa da questão escravista. Depois de muito sangue derramado e muita articulação política, prevaleceu a união do país e o bom senso de terminar a escravidão.

O presidente é um mito por ter liderado os Estados Unidos durante um dos momentos mais críticos de sua história, pelo seu exemplo de vida e pela sua morte trágica. Há uma vasta literatura sobre o estadista do Partido Republicano. Dentre os filmes mais recentes sobre ele, podemos citar “Abraham Lincoln, Caçador de Vampiros” e “Lincoln”, de Steven Spielberg.

Novamente, o diretor mostra competência na direção de um drama histórico. Dessa vez, ele nos apresenta uma mistura bem feita de biografia com thriller político. “Lincoln” perde força por mostrar o protagonista como um santo cheio de grandeza e virtudes, e não como um ser humano. Ele é marcado também pelo patriotismo extremado, mas até que compreensível

Em quase duas horas e meia, o filme desenvolve suas três linhas narrativas. Ele mostra a vida privada do presidente. Pai preocupado, não quer que o filho Robert (Joseph Gordon-Levitt) vá para a guerra. Suas ações para selar a paz se norteiam, sutilmente, no instinto paterno. Ao mesmo tempo, o longa mostra um Lincoln frustrado com o casamento. Sua mulher, Mary Todd (Sally Field), afirma por vezes seguidas que ele não a queria como companheira. Entremeado a isso, vemos o caminho que a 13ª Emenda percorreu para ser aprovada. Caminho esse, aliás, marcado por atalhos heterodoxos (leia-se subornos e pernadas em adversários políticos) propostos, às vezes diretamente, pelo presidente. Com menos destaque, cenas da Guerra Civil são mostradas. A ida do protagonista a um campo de batalha, perto do final, marca pela crueza e pelo simbolismo, ao mostrar pilhas de corpos e a bandeira dos confederados, os estados do sul, dando lugar à americana.

A atuação de Daniel Day-Lewis como Lincoln recebe elogios de todos. Ao contrário do que pensava Nelson Rodrigues, esta unanimidade não é burra, e sim óbvia. Como disse Spielberg em uma entrevista, o ator é o presidente. Os prêmios recebidos, e os a serem recebidos, pelo inglês valorizam um trabalho onde detalhes físicos e, segundo os registros, de temperamento e de voz foram emulados com perfeição.

Felizmente, o nível na atuação do filme se mostra alto. Vale destacar Sally Field e Tommy Lee Jones, indicados aos Oscar’s de melhor atriz e ator coadjuvante. Field mostra como Mary Todd era, de fato, a pessoa mais poderosa do país, por causa da forte influência sobre as decisões do marido. O ator veterano encarna Thaddeus Stevens, deputado abolicionista e aliado de Lincoln que exemplifica a ideia, tão querida pelos americanos, de que ações na vida pública são influenciadas pela vida privada, e vice-versa.

Com a fotografia se parecendo com a de séries por causa dos seus planos fechados, “Lincoln” tem seus melhores momentos quando se foca nas motivações da emenda e nos percalços por que sua aprovação passa. A narrativa também mostra as articulações por detrás dos panos. Os que sofrem de Complexo de Vira-Latas vão poder ver que conchavos, distribuição de afagos e promessas de cargos não são exclusividade da política nacional. As tramoias, sutis, ficam longe de alcançar a podridão que “Tudo Pelo Poder” e “Game of Thrones” revelam.

Hoje, justificar a “inferioridade” do povo negro e sua escravidão é, no mínimo, fascista. Mas, na segunda metade do século XIX, os dois assuntos dividiam opiniões. “Lincoln” tem o mérito de mostrar um processo histórico num momento crucial sem ser ofensivo, mesmo tendo a possibilidade real e indesejada para tal. Parece que ele nos diz o seguinte: “olha o que tivemos que passar e enfrentar para chegarmos até aqui”. Spielberg opta por deixar expressões preconceituosas, como “nigger” e “colored”, no roteiro, inclusive em falas do presidente, para ser fiel ao vocabulário da época e também para reforçar os percalços que a luta pelos direitos civis passou.

O patriotismo de Lincoln vem sendo alvo de críticas. Afinal de contas, afirmações como “os EUA são o farol que guia o mundo” se repetem com certa frequência durante a narrativa. Tendo em vista que a obra fala sobre o presidente que manteve a nação unida, o sentimento nativista é compreensível. Há, inclusive, beleza no respeito aos ancestrais e no amor à terra e aos conterrâneo em que ele também se baseia. Além disso, em Lincoln, a defesa do excepcionalismo americano não se baseia na inferiorização de um outro povo, ao contrário de “Argo”.

Por outro lado, o Abraham Lincoln retratado por Spielberg é um santo. É bem-humorado, otimista, ligado à família e perseverante. Até os erros de “São Lincoln” servem para reforçar o seu idealismo e honradez. Isso fica evidente quando Stevens fala que a 13ª Emenda é “fruto da corrupção ajudada pelo homem mais puro da América”.

A profundidade com que trata sua temática chega a ser uma aresta, dependendo do espectador. Se este conhecer pouco da história e da política dos Estados Unidos, é provável que algumas cenas, como as discussões sobre o passado do casal Lincoln, ficarão, para ele, sem sentido ou sem a força planejada pelo diretor.

Essas arestas, porém, são menores que os acertos de Lincoln. Boa parte do seu mérito se deve a Spielberg, que alterna brilhantemente a narrativa entre o explícito e o sutil, o tenso e o bem-humorado, o podre e o humano. Além disso, as atuações são talvez a maior qualidade da história. Daniel Day-Lewis se destaca em meio à excelência. Seu trabalho consegue minimizar a falta de graça do imaculado Lincoln.

O filme foi lançado durante as eleições americanas. Barack Obama, o primeiro presidente negro do país, buscava a reeleição tendo apoio maciço de setores liberais da sociedade. Um trunfo seu era a reforma no sistema da saúde, que dividiu a população, apesar de a medida lhe parecer óbvia de tão necessária. Por esses motivos, comparações e analogias a Lincoln marcam o momento atual de Obama e ganharam força, direta ou indiretamente, com o filme de Spielberg. Dessa forma, vemos a influência da ficção no cotidiano, as repetições de padrões nos processos históricos e como a realidade de hoje poderia, felizmente, assustar contadores de histórias racistas do século retrasado.

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