Agora que já caímos na real sobre a chancela “original da Netflix” NÃO ser necessariamente sinônimo de coisa boa – diria que há uma chance de meio a meio dos produtos da empresa serem criações ousadas, descompromissadas e instigantes, tais como Wild Wild Country e Nanette, ou meros caça-níqueis puxados por aquele infame algoritmo usado para descobrir as preferências do público, como as parcerias recentes com Adam Sandler ou o desastroso Insatiable –, é uma beleza e um alívio poder dizer que Mais uma Chance, uma saga agridoce sobre um casal de meia-idade que sonha em ter filhos, se encaixa com louvor na primeira categoria.

Um filme, aliás, em decidido e bem-vindo contraste à tendência das produções atuais, de traçar painéis humanos ambiciosos, para os filmes não-blockbuster, ou então de encher a tela com mais e maiores batalhas épicas, para os chamados filmes de verão. Mais uma Chance prefere olhar para dentro – e, também em altivo desprezo à simpatia atual por filmes que iluminem a vida das chamadas minorias, lança seu olhar sobre um casal branco, intelectualizado, de meia-idade e com uma vida razoavelmente confortável em – logo onde – Nova York. Ou seja, um enredo em tese banal, e com protagonistas que estão longe de representar a cada vez mais diversa e multicultural demografia dos espectadores de filmes – mas que, na verdade, é uma narrativa comovente, cativante e cheia de deliciosas turbulências no trajeto, e que comunica pensamentos e emoções com os quais qualquer espectador, não importa o background, pode se identificar, bastando, claro, ser humano (nada que impeça o prazer estético de papagaios ou capivaras, porém).

Rachel (Kathryn Hahn, da série Transparent) e Richard (Paul Giamatti, de Sideways – Entre Umas e Outras, da série John Adams e, pelo menos, outros 10 filmes a cada ano) são um casal de relativo sucesso no meio artístico – ele já foi dramaturgo e diretor de teatro, e ela é uma autora com contos publicados em revistas importantes, que agora se dedica a escrever o primeiro romance –, mas cuja devoção à carreira fez encobrir uma série de fissuras na vida pessoal dos dois, das quais eles só começam a se dar conta agora, com a chegada da meia-idade. Nenhuma dessas lacunas, porém, é mais dolorosa e urgente do que o desejo de ter filhos: Rachel, na casa dos quarenta, tem dificuldades enormes para engravidar, e Richard, numa tirada que o filme revisita como um emblema da incompletude em sua vida, tem apenas um testículo, que, como sói acontecer, está “bloqueado”, incapaz de produzir espermatozóides em número suficiente para possibilitar boas chances de fertilização.

O roteiro apresenta também o círculo mais íntimo dos protagonistas, formado por Charlie (John Carroll Lynch, de Zodíaco), irmão de Richard, e sua esposa, Cynthia (Molly Shannon, de Eu, Você e a Garota que Vai Morrer e mais um zilhão de filmes), além da filha mais velha deles, Sadie (Kayli Carter, da série Godless), uma garota vivendo a sempre complicada transição para a vida adulta, e que venera Rachel e Richard como modelos para as suas próprias ambições à vida artística – mais adiante, essa relação se adensa e complica quando o casal pede a Sadie que seja a doadora de um óvulo fértil para Rachel.

A direção e o roteiro delicados de Tamara Jenkins (de A Família Savage, outro belo estudo das relações familiares) dão uma dimensão extraordinariamente pungente aos esforços cada vez mais dolorosos de Richard e Rachel para serem pais. Desde os rituais rotineiros de médicos e hospitais para sugerir conforto e descontração aos pacientes, que só conseguem soar indiferentes e mecânicos, às pequenas e magníficas cenas em que o casal deixa escapar ressentimentos e divergências que mostram o quanto esse projeto, ou obsessão, vem custando a todos os demais departamentos da vida dos dois, Mais uma Chance é um exame franco e cheio de observações ferinas sobre a vida contemporânea, dos subterfúgios bem-educados que sustentam essa arquitetura frágil chamada casamento às dificuldades e ao preço ainda alto de se perseguir uma carreira nas artes – mas colorido por uma ternura e uma empatia bem-humorada para com os pequenos martírios e frustrações do casal, que parecem muito com os que todos nós vivemos, ou provavelmente iremos viver, em algum momento da vida.

Os diálogos são magníficos, e conduzidos por um elenco de sonho, cada ator talhado para habitar e dar a exata dimensão humana de seu personagem – ainda assim, a dupla formada por Hahn e Giamatti, acrescida por Carter da metade em diante, faz um trabalho tão sutil, tão perfeito em sua dosagem de tristeza e humor, leveza e acidez, que eu só posso chamar de milagroso. Como é bom, aliás, ver atores desse porte em oportunidades à altura dos seus talentos – só Giamatti e, talvez, Bill Murray, saberiam comunicar tão bem esse desespero quieto, essa amargura delicada desses personagens frustrados pela vida, mas ainda românticos e idealistas. E como é bom, também, ver John Carroll Lynch, um ótimo ator relegado a papéis insignificantes em centenas de filmes, podendo nos relembrar o seu enorme talento num papel mais substancial. Com a fotografia cheia de ótimas sacadas visuais de Christos Voudouris, mais a edição atenta ao timing exato que pedem as cenas cômicas e dramáticas (há ainda as tragicômicas), está formado um pacote fabuloso, muito mais merecedor do seu Netflix and chill do fim de semana do que a nova bobagem de Adam Sandler.

Por tudo isso, fica um apelo deste escriba pra que, caso esse filme apareça na sua lista de sugestões, que você não caia naquelas desconfianças lá do começo do texto – “pô, dois atores ‘velhos’, um filme chato sobre pessoas que tentam ter filhos, gente branca e remediada, etc.” – e dê uma chance a uma das melhores obras de ficção a ganhar as telas em 2018: um filme que, para se apreciar, basta se permitir conhecer e saborear sem pressa essa iguaria chamada grande cinema.