Certos diretores não se contentam só em fazer grandes filmes. Por força de uma personalidade e talento únicos, seus filmes acabam por englobar toda uma cultura, um modo de viver, uma visão de mundo – noutras palavras, um país. Manoel de Oliveira (1908-2015) é assim. Tal como John Ford nos EUA, Federico Fellini na Itália, ou Akira Kurosawa no Japão, o mestre português, falecido no último dia 2, aos 106 (!) anos, fez dos seus filmes a melhor tradução da alma lusitana para as telas.

Em sua trajetória única, percorrendo todas as fases do cinema, Manoel de Oliveira buscou a união entre a imagem e a palavra, a sensação e a experiência, o concreto e o sublime. De seus 47 filmes, entre curtas e longas-metragens, ficções e documentários, apreende-se uma rica substância humana, um olhar peculiar para a vida e seus dramas, mas, principalmente, a poesia que só a grande arte – e um grande artista – são capazes de conjurar.

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Origens: cinema mudo em Portugal (1927-1942)

Nascido em uma família rica – o pai do diretor, Francisco José de Oliveira, foi um pioneiro da indústria portuguesa, tendo criado, entre outras coisas, a primeira usina hidrelétrica do país –, Manoel teve uma educação cosmopolita, dividindo-se entre a terra natal – o Porto, região litorânea a cujas paisagens iria retornar várias vezes em sua filmografia – e a Espanha. A vocação artística, porém, apareceu cedo na vida do diretor. Com 19 anos, em 1927, Manoel e alguns amigos de cinefilia conceberam o que era para ter sido um épico sobre a participação de Portugal na I Guerra Mundial. O projeto, infelizmente, nunca foi além da empolgação juvenil.

Aniki-Bóbó (1942) Manoel de OliveiraSem desanimar com a experiência, o futuro cineasta foi estudar atuação com o diretor italiano Rino Lupo, chegando a conquistar um papel no segundo filme sonoro feito em Portugal, A Canção de Lisboa (1933). O que levaria o garoto passar de vez para detrás das câmeras seria o contato com o filme Berlim: Sinfonia de uma Cidade (1927), do alemão Walther Ruttmann. A obra era o expoente máximo de um subgênero peculiar do cinema mudo: os symphony films, documentários de inspiração poética, que mostravam a vida na cidade por um viés abstrato, onírico. Inspirado por Ruttmann, Manoel fez seu primeiro filme: Douro, Faina Fluvial (1931).

De cara, um trabalho maduro, de um estilista nato, extraindo o máximo significado de planos concisos e objetivos. A obra foi desprezada pelo público e a crítica portugueses, mas outros cineastas, e até literatos, como o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, aplaudiram os resultados da estreia de Oliveira. A chegada da ditadura de António Salazar, porém, frustraria mais uma vez as ambições do diretor.

Opositor aberto, mas sem alarde, do salazarismo, Oliveira foi enquadrado pela ditadura, e, ao longo dos dez anos seguintes, só pôde rodar uns poucos documentários, de encomenda. Usando o dinheiro familiar, mais a renda levantada junto a amigos empresários, ele pôs de pé o seu primeiro longa: Aniki-Bóbó (1942). A história de um grupo de crianças de Lisboa, entre travessuras, rivalidades e a descoberta do amor, marcou também a primeira incursão de Oliveira pela ficção. Rodado com um elenco principal amador, com baixo orçamento e um mínimo de locações, o filme ainda assim confirma a elegância do estilo do cineasta, e prelude em alguns anos à onda neo-realista, com sua ênfase na vida das pessoas comuns, das classes mais baixas. Mais uma vez, foi demais para o público português: o insucesso esmagador condenaria Oliveira a mais uma década no ostracismo.

O princípio da incerteza (1956-1963)

O Acto da Primavera (1963), de Manoel de OliveiraSem nunca deixar de planejar novos filmes, mesmo tendo de descartá-los um por um, Oliveira decide recomeçar: após um ano (1955) de estudo intenso dos processos da cor no cinema, o diretor retorna aos curtas, aos documentários e – mais importante – às imagens do Porto: em O Artista e a Cidade (1956), Manoel mistura os registros da vida local com as belas pinturas do artista português António Cruz. O filme foi um relativo sucesso, ajudando a divulgar o nome do cineasta em festivais pelo continente. Mas sua volta para valer foi com o semidocumental O Acto da Primavera (1963). Registro de uma encenação da Paixão de Cristo, um ritual de grande importância na cultura portuguesa, a obra traz um estilo novo, metalinguístico, onde Manoel filma não apenas a ação popular, mas também a sua própria atuação no palco das filmagens. Esse estilo reflexivo, deliberadamente anti-realista, além da montagem alucinada no segmento da morte de Cristo – um protesto contra a ação americana no Vietnã – causaram grande controvérsia nos círculos culturais portugueses. Só que, desta vez, o estrago estava feito: Manoel de Oliveira é aclamado, enfim, como um grande diretor em seu país.

Toda a esperança vislumbrada em Acto, porém, seria descartada no curta seguinte: o provocativo A Caça (do mesmo ano), com seu tom irado, surrealista, onde Manoel se aproxima de seu maior inspirador, o cineasta espanhol Luis Buñuel. Por causa do filme, Oliveira foi preso por dez dias, além de ser obrigado a alterar a montagem, inserindo um final mais ao gosto da censura.

Volta ao cinema e a consagração (1970-2012)

As mudanças sociais profundas da década de 1960 também se fizeram sentir na isolada e provinciana Portugal de Salazar. O movimento cineclubista, renovado, projetaria toda uma nova geração de diretores, mas também abriria espaço para o maior de todos: Oliveira.

Com Passado e Presente (1971), outra sátira impiedosa da moral repressiva vigente, um sexagenário Manoel daria início à fase mais produtiva e vigorosa de sua carreira. Começam a sobressair o estilo poético, alimentado tanto de cinema quanto de literatura, as indagações filosóficas e morais, a técnica enxuta e simples, mas que esconde uma vasta amplitude de pensamento.

Daqui em diante, enumerar os highlights da carreira de Oliveira é uma tarefa ingrata. Melhor seria mergulhar em todos: as parcerias com grandes autores portugueses, como o dramaturgo José Régio (Benilde ou a Virgem Mãe, de 1975; O Meu Caso, de 1986, com sua estrutura inovadora e radical; ou a poderosa meditação política de O Quinto Império – Ontem como Hoje, de 2004), a escritora Agustina Bessa-Luís (o belo Francisca, de 1987; a releitura de Madame Bovary em Vale Abraão, de 1993, com um grande trabalho de Leonor Silveira, uma habitué dos filmes do diretor; o provocativo O Convento, de 1995, onde Oliveira colabora com John Malkovich e Catherine Deneuve, além do belo Party, do ano seguinte), ou a magnífica adaptação de Amor de Perdição (1979) do clássico Camilo Castelo Branco, filme que abriu muitas portas para Oliveira no cinema europeu, principalmente na França.

Marcello Mastroianni em "Viagem ao Princípio do Mundo" (1997), de Manoel de OliveiraHá ainda as revisitas ao passado de Manoel (o extraordinário Viagem ao Princípio do Mundo, de 1997, filme que marca a despedida do italiano Marcello Mastroianni das telas; o autobiográfico Porto da Minha Infância, de 2001, que resgatou imagens de Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó para uma novíssima geração de espectadores; e o curta final do diretor, O Velho do Restelo, de 2013, onde Oliveira põe-se a dialogar com clássicos da Europa ibérica, como Camões e Dom Quixote) e do próprio país (o épico Le Soulier de Satin [1985], ambientado no auge das colonizações; Non, ou a Vã Glória de Mandar, de 1990, que revisa por uma ótica irônica e pessimista a história militar de Portugal; e o já citado O Quinto Império), além de obras inclassificáveis – e maravilhosas – como a cineópera Os Canibais (1988), a homenagem definitiva de Oliveira a Buñuel; o exame da culpa e da redenção em  A Divina Comédia (1991), que NÃO é adaptado do livro de Dante Alighieri; a biografia do padre António Vieira em Palavra e Utopia (2000), onde o nosso Lima Duarte dá vida aos últimos dias do autor de Sermões; a viagem sentimental de Um Filme Falado (2003) ou o drama, com toques de thriller, de O Princípio da Incerteza (2002), sem esquecer, ainda, o ótimo O Gebo e a Sombra (2012), último longa do diretor.

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Um raro cineasta de origem abastada, que fez fortuna durante boa parte da vida ao tocar os negócios do pai, Manoel de Oliveira já declarou, uma vez, que não faz filmes por dinheiro ou sucesso, mas pelo simples prazer – e necessidade, e ímpeto – de contar histórias. Contando histórias de Portugal, imprimindo na tela a nobreza, a paixão, o prazer e a melancolia lusitanos, Manoel de Oliveira transfigura Portugal na história universal do cinema, e as deixa – Portugal e a história do cinema – imensuravelmente mais ricas no processo. Aproveite o ensejo para conhecer a poesia visual deste grande artista do cinema.