“Uma coisa bela é um prazer eterno”. A frase do poeta John Keats, citada a uma certa altura de Mary Poppins, o grande musical da Disney que arrebatou o cinema em 1964, se aplica tanto à maravilhosa criação do estúdio quanto ao gênero a que ele pertence. Pouco a pouco, com Caminhos da Floresta, Frozen: Uma Aventura Congelante, Mamma Mia!, Sweeney Todd e outros, o musical vai se (re)afirmando como cinema – como um gênero com direito próprio à existência, com uma tradição grandiosa e uma vocação natural para o prazer do espectador.

Mary Poppins, com Julie AndrewsMas todos os exemplos citados acima, por melhores que sejam, lutam para serem dignos de um chinelo de Fred Astaire. Lamentavelmente, Mary Poppins, um dos ápices do musical, também é um de seus últimos suspiros. Dentro de poucos anos, o gênero evaporaria das telas, e os poucos exemplares a surgirem aqui e ali – o melhor sendo o inesquecível Cabaret (1972) de Bob Fosse – pareciam relíquias de um passado ingênuo, quase tolo, onde ainda se acreditava que uma pessoa pudesse sair cantando e dançando à rua, algo impossível no “mundo real”, de presidentes assassinados, Vietnã e rock ‘n’ roll.

Bem, como alguém com a firme convicção de que o cinema não é o “mundo real” – então, para quê cinema? –, de que pessoas comuns que cantam e dançam como gênios são tão naturais num musical quanto os experts em armas num filme de ação, ou os motoristas alucinados em Velozes e Furiosos, e de que nada supera, em cinema, um grande número de canto e dança, apresento-lhes enfim Mary Poppins, um filme de grandes canções, coreografias virtuosísticas e deslumbrante integração entre atores reais e personagens de desenho animado.

A história por trás do filme é tão interessante que chegou a ganhar seu próprio filme – Walt nos Bastidores de Mary Poppins, no infeliz título nacional, de 2013. Em 1961, ano em que Walt Disney enfim adquiriu os direitos sobre o romance de P. L. Travers, o grande animador estava há nada menos que 23 anos (!) tentando convencê-la. A teimosia da autora inglesa vinha do seu ceticismo em relação ao cinema – para ela, nenhum filme conseguiria fazer jus às suas criações literárias. Tanto pior, então, que quem estivesse tentando filmá-las fosse um estúdio americano, conhecido não por filmes, mas por desenhos animados, um gênero por definição infantil, pelo menos à época. Mas Disney, com insistência e tato, mais a promessa de grandes lucros, finalmente quebrou a resistência da britânica. Ufa!, disseram suas filhas, fãs de Poppins, e o eco dessas palavras provocou marolas no Tâmisa. Ufa!, dizemos nós hoje, porque existe esse filme.

A produção foi outra novela. Devido ao grande número de efeitos especiais, os preparativos para as filmagens levaram cerca de dois anos. A estrela do filme, Julie Andrews, que vinha de uma ascensão fulminante na Broadway, com My Fair Lady­ – do qual foi sacada quando a peça virou filme, sendo substituída por Audrey Hepburn, que não sabia cantar – estava grávida quando recebeu a proposta, e Disney teve de esperar ela ter o bebê para poder filmar. As canções da obra, escritas por Richard e Robert Sherman, foram vistas com desconfiança por Travers, que queria canções populares inglesas na trilha. Disney, porém, bancou todas essas apostas – e venceu.

Na trama, Poppins (Andrews) é uma babá com poderes mágicos, que chega ao lar da família Banks depois que os filhos, Jane e Michael (Karen Dotrice e Matthew Garber) conseguem pôr mais uma cuidadora para correr. A família é liderada pelo pomposo e rígido George Banks (David Tomlinson), que acredita que as crianças devem começar a se preparar para as agruras da vida adulta. Completam o inquieto lar a mãe, Winifred (Glynis Johns), ativista do voto feminino com pouco tempo para os filhos, e as empregadas, Ellen e Sra. Brill (Hermione Baddeley e Reta Shaw).

Mary Poppins, com Julie AndrewsA chegada da mulher misteriosa irá transformar toda a família, não sem alguma resistência do Sr. Banks, e mais confusões de Jane e Michael. Poppins, porém, tem a seu favor a empatia com as crianças, além, é claro, dos poderes extraordinários. Junto com o faz-tudo Bert (Dick Van Dyke), velho amigo – e possível romance – da babá, ela irá mostrar, de forma colorida e agitada, os prazeres que também existem nas responsabilidades da vida.

Deu pra ver que a trama é de fato ingênua, até boba. Mas isso importa pouco. Mary Poppins é um prazer eterno graças ao visual vibrante, arrebatador, aos ambiciosos números musicais e ao elenco bem azeitado, com a charmosíssima Andrews à frente. Impossível esquecer peças como “Jolly Holiday”, em que Poppins, Bert e as crianças “visitam” pinturas, e têm, entre outras coisas, uma corrida de cavalos de carrossel e um chá servido por pinguins. Ou “Step in Time”, um elaboradíssimo ensemble nos telhados de Londres, em que os bailarinos são… limpadores de chaminé. Como esquecer, ainda, a melodia insinuante de “Chim Chim Cher-ee”, canção que sublinha a trama em vários momentos, ou a palavra ensinada por Poppins para os momentos em que não se tem nada a dizer – “Supercalifragilisticexpialidocious” (acreditem, escrever certo também não é nada fácil)? Quando se contabilizam os esplendores de Mary Poppins, fica claro que estamos diante de uma obra-prima do cinema, e um feito culminante, também, na carreira de Walt Disney – esse filme foi o passaporte definitivo para o estúdio se lançar em empreendimentos mais adultos, além de os lucros vultosos – 31 milhões de dólares, em valores da época – terem permitido a criação do complexo Disney World, que o animador, morto em 1966, não chegou a ver construído.

Mary Poppins foi o maior sucesso de 1965, além de ter sido indicado a treze Oscars – recorde nunca igualado por outro filme da Disney – e vencido cinco: Melhor Edição, Efeitos Visuais, Trilha Sonora Original, Canção Original (“Chim Chim Che-ree”) e, numa deliciosa reviravolta para Andrews, Atriz, sobre a rival Hepburn. Poppins pode se gabar ainda de ser um dos poucos filmes com 100% de resenhas positivas no agregador online Rotten Tomatoes. A unanimidade, infelizmente, só não alcançou a criadora da personagem. Para P. L. Travers, o uso de animação e a maneira “infantil” como, a seu ver, Disney recriou a babá foram imperdoáveis. Para uma versão teatral do romance, a ser montada na década de 90, a inglesa condicionou sua aprovação à exigência de que nenhum dos nomes envolvidos no filme de 1964 participasse da produção. Rusgas que passam, arte que fica. Pois Mary Poppins, assim como outros grandes musicais do cinema, é um filme que triunfa pela beleza. E uma coisa bela, já disse o poeta, é um prazer eterno.