Não deixa de ser um fato no mínimo estranho e curioso, que uma obra nacional independente com elementos de horror, como é o caso de Mate-Me Por Favor, teve agendada sua estreia na mesma semana de lançamento do blockbuster Bruxa de Blair. Enquanto a produção americana é a cara do público teen que adora consumir e abstrair entretenimentos de sustos fáceis – os aspectos visuais e sonoros hoje são fundamentais para geração atual -, a obra debute da cineasta Anita Rocha da Silveira caminha a passos largos distante do cinema mainstream, isto é, não é de fácil assimilação para este tipo de público, em razão da sua abordagem pouco convencional, construída toda em metáforas e simbolismos sociais.

Na verdade, é até difícil classificá-la em um gênero específico, pois abraça diversas posições, do terror urbano ao thriller intimista, da comédia teen caricatural a ironia impregnado de forte crítica social. Há o flerte com vários subgêneros, porém, jamais adere a nenhum deles. Essa composição de gêneros variados o transforma em um estranho (e fascinante) oásis sobre as transformações sociais, que analisa a realidade juvenil perante o prisma da violência, sexualidade e do embotamento afetivo das relações. É como se cada elemento que compõe a subjetividade do ser humano brotasse diretamente da sua confrontação com o urbanismo caótico atual.

Bia (Valentina Herzage) é uma jovem adolescente da classe média da Barra da Tijuca que vive as banalidades do cotidiano e uma vida quase de completo marasmo. Sua rotina e das suas amigas de colégio será alterada depois que um serial killer começa a matar jovens em um terreno baldio próximo da sua casa. Credenciado no Festival do Rio de Janeiro de 2015 (ganhou prêmios de melhor direção e atriz) e no Festival de Veneza do mesmo ano (prêmio da crítica), Mate-Me Por Favor apresenta no conteúdo, subtexto e forma estética elementos que se destacam.

Mate-me Por Favor

O vazio do presente e a ausência de futuro – A juventude morta-viva

Em seu primeiro longa-metragem, Anita elabora um microcosmo social da adolescência, regido por um subtexto carregado de simbolismos e metáforas que denotam uma geração sem perspectivas de futuro, devido a um presente emocionalmente vazio. É como se este universo juvenil fosse exposto a um verdadeiro massacre das perturbações sociais que aniquilam cada sentimento e se espalham como um vírus do medo que consome a subjetividade de cada um. Os subtextos que o filme propõe caminham pela introspecção, remetendo ao intimismo de Boi Neon, de Gabriel Mascaro, no que tange o seu olhar sobre os papéis de gêneros, e ao terror fóbico social de O Som Ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, sobre o progresso capitalista devorador.

Nesse aspecto, é construído um thriller com camadas e elementos de horror que batem intimamente em nossos temores e angústias sociais, deixando o trabalho uma versão dark e sombria do seriado Confissões de uma Adolescente. Não tem como deixar de citar as belas referências que a diretora, utiliza que vão de cineastas como David Lynch – a forma como Bia e as amigas descobrem uma realidade assustadora através dos assassinatos naquele universo da classe alta carioca remete à mesma situação vivenciada por Jeffrey Beaumont em Veludo Azul (1986) – através de uma narrativa que equilibra tons naturais com incidentes carregados de surrealismos, ao cinema guerrilha de George Romero, principalmente ao abordar a crítica social para delinear uma juventude amortecida, quase “morta-viva”, que no lugar de carne, utiliza a violência como combustível para saciar seus impulsos primitivos. As cenas que mostram os jovens caminhando para os terminais de ônibus e se amontoando na lanchonete da escola ilustram bem a simbologia utilizada por Anita para associá-los as criaturas dos filmes de Romero.

Mate-me Por Favor

Rio 40 graus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos

Não tem como negar que uma das melhores qualidades de Mate-Me Por Favor é a sua estética. Anita demonstra uma ótima habilidade para administrar os espaços e assim criar seu suspense sensorial. A fotografia instigante de João Atal e a edição de som de Bernardo Uzeda transformam o Rio de Janeiro e sua bela Barra da Tijuca em um ambiente desolador que lembra bastante a Detroit de Corrente do Mal (2015) – inclusive como a obra americana, não há nenhuma figura adulta no filme, o que denota uma sensação de falta de referências, de abandono e decadência da instituição familiar. A beleza do Rio é engolida pelas sombras e substituída pela apatia e frieza de um ambiente sem vida.

O uso estratégico das cores e signos visuais dá uma dimensão de impacto à forma do filme. O uso intenso de filtros vermelhos que tomam conta do quadro representam tanto o desejo quanto a violência dos personagens, mas também podem ser compreendidos como um processo de cisão com a realidade e início da psicopatia – exposta sempre em cores vibrantes. A predominância do roxo não apenas remete à morte como indica a existência de um mal contagioso, sintoma de uma violência que ataca, porém, sem forma ou rosto e que se faz presente nas cores frias. Em relação aos signos visuais, eles estão presentes na narrativa em predominância: o sangue, o apito, o matagal do crime, os pontos de ônibus, todos elementos bem utilizados pelo design de produção e que funcionam para o horror psicológico.

Mate-me Por Favor

A morte como rito de passagem

Aqui se encontra o arco mais interessante do filme: abordar a morte como rito de passagem, uma força transformadora e implacável no ser humano. É através dela que Bia e as amigas desenvolvem uma curiosidade mórbida pelos assassinatos, que jamais são vistos como algo assustador, e sim excitante. O roteiro traça uma linha coesa sobre a proximidade entre prazer e dor, onde o apreço pela morte é o agente transformador, responsável pelo declínio psicológico dos personagens e da sua incapacidade de criar vínculos e sentimentos.

Isso é observado nas ações de Bia, que possui uma enorme obsessão em relação a sua sexualidade, seja em transar com o namorado evangélico (que resiste inicialmente, mas cede jogando a responsabilidade para garota, uma interessante metáfora que o texto faz sobre o machismo reinante na sociedade atual), seja no fascínio pelos estupros sofridos pelas vítimas do serial killer, que oferece uma dimensão psicológica fascinante entre a pulsão de morte e o sentimento de culpa da personagem. Em certo momento do filme, vários personagens apresentam ferimentos e chagas nos corpos, que refletem no físico suas fragilidades mentais, e aqui não tem como deixar de não associar esta visão ao cinema cronenberguiano da década de 80, que emulava essas feridas corpóreas e o fascinante triângulo entre sexualidade, pulsões agressivas e morte.

Valentina Herzage merece aqui vários elogios, por interpretar de forma brilhante sua personagem, sempre com um olhar desumano e analítico, conferindo a Bia um realismo assustador de uma jovem em processo de despersonalização, um trabalho impecável para uma atriz em seu primeiro trabalho no cinema. Porém, não podemos negar alguns deslizes de Anita como marinheira de primeira viagem. O exibicionismo estético e formal atrapalha bastante, muitas vezes deixando a narrativa frouxa e transformando os simbolismos um tanto quanto exagerados, sendo o subtexto religioso o mais problemático em relação a isso. É como se a estética em certos momentos esvaziasse os conceitos significativos do seu texto, deixando a forma se sobrepor ao conteúdo.

Ainda assim, Mate-Me Por Favor é uma viagem impressionante sobre o universo juvenil, que utiliza o drama e conflitos desta fase mesclando-os ao horror psicológico sutil e as altas doses de crítica social, sarcasmo e estudo sobre a apatia crônica de uma geração amortecida pelo estresse urbano. Não é um filme de fácil de digerir – o que explica pessoas saindo do cinema durante sua exibição – ainda mais para quem curte o cinema mainstream.  Porém, é ótimo ver uma obra com tantos recursos interpretativos e que oferece uma catarse emocional. Em uma sociedade contemporânea e ambígua, Anita nós aponta que ao exorcizar nossos afetos e responsabilidade morais, estamos construindo nosso próprio vírus autodestrutivo, seguindo uma vida de zumbis e potenciais serial killers.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.