Se houvesse um equivalente cinematográfico para o fanfarrão, truculento e monstruosamente bem-sucedido candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump, este teria de ser Michael Bay. Com um pouco mais de sutileza, os filmes do diretor americano expressam os mesmos valores da chamada “América grande” propalada pelo empresário: supremacia militar, desconfiança (ou um mal-disfarçado repúdio) aos estrangeiros, especialmente asiáticos e sul-americanos, e o endosso da violência na defesa dos interesses nacionais – ou pessoais, se for o caso.

A coisa não é assim tão simples, dirá você. Afinal, nos filmes de Bay, também há espaço para a autoironia, o questionamento de posturas políticas e morais do país, e, sobretudo, muito humor. Mesmo assim, é inegável que, com seus heróis machões, hipertrofiados, as mulheres em constante função de sex symbols, e seu absoluto fascínio por grandes batalhas, a obra do cineasta está mais identificada com o simplismo e a agressividade da direita mais radical do país – e, a julgar pelo extraordinário sucesso de público que seus filmes vêm acumulando nas últimas duas décadas, com a mentalidade da “América média”, a grande massa de eleitores que se ressente da perda de postos de trabalho para migrantes, do imbróglio das incursões militares ao Oriente Médio, e do avanço de agendas como os direitos LGBT e o empoderamento feminino. Michael Bay tem a ver com tudo isso – e é, ao mesmo tempo, um dos grandes artífices do cinema de entretenimento americano, talvez o nome mais emblemático de Hollywood nesse período. É fácil não gostar de seus filmes; mais difícil é tentar entender a importância deles no cenário cinematográfico do país, e porque, afinal, Bay continua a ser um estrondoso sucesso.


O começo: dos primeiros anos até Bad Boys (1965-1995)

Nascido em 1965 em Los Angeles, na Califórnia, Michael Benjamin Bay cresceu em meio a um dos períodos mais férteis do cinema de seu país, a chamada “Nova Hollywood”. Com nomes como Steven Spielberg, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola à frente, a Nova Hollywood foi uma geração de cineastas que levou as mudanças comportamentais, políticas e morais da década de 1960 para o cinema americano, enriquecendo-o com obras tão densas e corajosas quanto O Poderoso Chefão (1972), O Exorcista (1973) e Taxi Driver (1976). Filho de pais adotivos, afluentes na comunidade judaica de Los Angeles, Bay estava atento a tudo isso, mas o que realmente lhe falava ao coração era o lado mais juvenil, descomplicado, daquela turma: os filmes de Spielberg e George Lucas, que revitalizaram o cinema de aventura e sci-fi, coisas como Tubarão (1975), Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) e Star Wars (1977). Eventualmente, o diretor realizaria o sonho de colaborar com os dois mestres.

(O próprio Bay recorda um incidente da infância que atesta o seu amor pelo cinema, desde tenra idade: ele amarrou fogos de artifício num trem de brinquedo e os acendeu, só para poder filmar a explosão com a câmera 8mm de sua mãe. Os bombeiros precisaram ser chamados, Michael ficou de castigo, e todos nós sabemos, agora, de onde vem a piromania do diretor em seus filmes)

Foi através de George Lucas que Bay conseguiu sua primeira oportunidade. Seu trabalho era organizar os storyboards de Os Caçadores da Arca Perdida (1981), e, a julgar por eles, o então adolescente tinha certeza de que o filme seria uma bomba. Ver o resultado final, segundo Bay, a “mágica” operada por Spielberg, o impressionou tanto que o rapaz decidiu, dali por diante, ser ele mesmo esse mágico. Os cinéfilos cascudos até hoje não perdoam Steven por isso, mas nesse dia nasceu Michael Bay, diretor de cinema.

Até pôr as mãos num filme, porém, o rapaz deu duro para se fazer notar na indústria. Como David Fincher, Spike Jonze e outros de sua geração, Bay chegou aos filmes não através de escolas de cinema, curtas independentes ou laços de parentesco em Hollywood, mas por meio da publicidade. Seus videoclipes, e principalmente as suas propagandas, deixaram claro que se tratava de um grande talento visual, e em curtíssimo tempo o diretor já estava criando anúncios para marcas como Coca-Cola e a Cruz Vermelha, e ganhando os principais prêmios da indústria. Assim como o incidente do trem, a estética publicitária, da qual Bay foi um dos criadores, seria um traço marcante em seu estilo visual, noutro ponto que causa controvérsia entre os fãs de cinema.

Já um nome estabelecido no meio, Bay entrou no radar dos produtores Don Simpson e Jerry Bruckheimer, que desde a década de 1980 vinham redefinindo o cinema de ação, tirando-o da zona sombria de filmes como Operação França (1971) e Perseguidor Implacável (1971) e dotando-o de cores, música e peitorais sarados em filmes como Top Gun – Ases Indomáveis (1986), Um Tira da Pesada (1984) e Dias de Trovão (1990). O estilo ágil, ainda sem o exagero de cortes pelo qual o diretor ficaria marcado, e o talento de Bay para grandes cenas de ação foram ingredientes decisivos no sucesso de Os Bad Boys (1995), filme que se provaria um marco na carreira de todos os envolvidos: Simpson e Bruckheimer voltariam ao topo, depois de um início de década marcado por fracassos; Will Smith e Martin Lawrence, os protagonistas, virariam estrelas em escala mundial, emplacando novas e bem-sucedidas incursões na ação e na comédia; e Bay, até então um nome ligado à propaganda, teria as portas abertas em Hollywood. E, vá lá, é um filme de ação que diverte e entretém, sem maiores pretensões, embora esteja longe do impacto dos primeiros Simpson-Bruckheimers e das realizações do próprio Bay mais lá pra frente.

Sucesso – e controvérsia – como diretor de ação: de A Rocha até Transformers: O Lado Escuro da Lua (1996-2011)

A propósito de Independence Day 2, escrevi que os anos 1990 são, para muita gente, uma era dourada do cinema de ação, com diretores como John Woo e Tony Scott em grande forma, e ícones como Bruce Willis, Sylvester Stallone e Nicolas Cage entregando um ótimo exemplar do gênero após o outro. Um dos que mais contribuiu para essa fertilidade do cinema de tiros e explosões é Bay. Logo em seguida a Os Bad Boys, o americano veio com dois produtos emblemáticos daquela década: A Rocha (1996) e Armageddon (1998). O primeiro pode ser considerado o melhor filme do diretor: mesmo os seus detratores têm de reconhecer que a obra é muito divertida, e que a interação entre Cage e Sean Connery – por sinal, os melhores atores que o cineasta já teve à disposição, além de Ed Harris, também neste filme – é um deleite. Já então, sua admiração pelas forças militares americanas é evidente e ruidosa, mas, pelo menos neste filme, ela não é nem piegas nem (muito) jingoísta. Armageddon, por sua vez, não envelheceu tão bem, mas é um dos mais prazerosos monumentos kitsch daquela década, com sua trama sobre petroleiros toscos, liderados por Bruce Willis, que têm de perfurar um asteroide para impedir que ele se choque com a Terra. Antes que Bay quisesse ser “sério” ou entrasse na onda de Transformers, seus três primeiros filmes continuam sumamente divertidos, entretenimento puro e simples, que não precisam de justificativas para serem apreciados – coisa que aconteceria com grande frequência daí em diante.

Pearl Harbor (2001) – tente ler sem rir – é a tentativa de Michael Bay ser sério. O que significa inserir a orgia de explosões num contexto dramático, no caso, o ataque do Japão à base naval americana, que marcou a entrada do país na Segunda Guerra Mundial. Adicione à receita um trio central apático (Ben Affleck, Josh Hartnett e Kate Beckinsale) e um roteiro que opõe os machões atléticos e patrióticos de Bay a japoneses retratados como máquinas de matar, numa tentativa de fazer drama lacrimogêneo, e o resultado é um dos filmes que merecidamente colocam Michael Bay como um vilão do cinema americano, um diretor com a crença sincera em valores simplistas, empregando o seu notável talento visual para bombardear o público com efeitos especiais e barulho, no convencimento desses mesmos valores. O filme conseguiu a proeza de ganhar um Oscar (Melhor Edição de Som) e ser indicado ao Framboesa de Ouro ao mesmo tempo (seis indicações, incluindo Pior Filme), e isso diz muito de Bay como diretor.

Comparado ao risível e até ofensivo Pearl Harbor, Bad Boys II (2003) é uma experiência inócua. Sem conseguir repetir a mesma graça do original, bobo demais (até para Bay), o filme teve uma bilheteria tímida para os padrões do diretor (273 milhões de dólares, contra os 130 gastos na produção) e marcou o fim da parceria com Bruckheimer. A Ilha (2005) é mais ambicioso. Trazendo Ewan McGregor e Scarlet Johansson numa distopia sobre um futuro em que as pessoas vivem isoladas de uma suposta “contaminação” no mundo exterior, o filme se beneficia do talento dos intérpretes e da bravura visual típica do diretor, mas sua trama confunde os registros, e resulta em dois filmes radicalmente diferentes: o primeiro, em que o personagem de McGregor descobre a verdade sobre o “mundo”, e o segundo, em que ele e Johansson se rebelam contra o complexo onde estão presos. Mesmo insatisfatório, e considerado um fracasso de bilheteria, A Ilha é provavelmente o melhor filme de Bay na década, com uma atenção incomum à atmosfera e sequências de ação verdadeiramente memoráveis. Mas o que viria a seguir – a série Transformers, por sinal a aguardada colaboração de Bay com o ídolo Spielberg, que assina a produção executiva – basicamente varreria a memória desse filme pelo público.

Muito da má fama de Bay, e do ressentimento em torno do seu sucesso massivo, se deve à saga dos robôs Autobots. Até agora com quatro filmes, a série Transformers representa, para muita gente (eu incluído), a epítome do que há de errado com o cinema de Hollywood. Trata-se de um assalto interminável aos sentidos do espectador, uma orgia abusiva de cortes rápidos, cores berrantes, explosões e muito barulho, a serviço de uma trama vaga e cheia de furos sobre o conflito milenar entre duas facções de robôs, que fazem da Terra o seu palco de batalha e luta pela supremacia. Comparado às suas sequências, Transformers (2007) é até comedido no uso desses recursos, e traz duas virtudes que, por mais óbvias, escapam completamente a Bay nas duas tentativas seguintes: o real aproveitamento do carisma de Shia LaBeouf, como o protagonista Sam Witwicky, um jovem comum que é apanhado no conflito épico entre os Autobots, defensores da Terra, e os Decepticons, seus nêmeses; e o desenvolvimento de uma trama de fato, com começo, meio e fim, onde a batalha dos robôs é a decorrência, e não a única preocupação, da história maior. Coisas que não importam em A Vingança dos Derrotados (2009) e O Lado Escuro da Lua (2011), mas, enfim, com bilheterias beirando – e, no caso de O Lado Escuro, até ultrapassando – o bilhão de dólares, o público também não deu a mínima.

Bay continua a explorar a franquia (seu próximo filme está marcado para o ano que vem, e há novos derivados da série agendados até 2019), e inúmeros sucessos de bilheteria surgiram em seu encalço, mas, para quem aprecia a criatividade nos filmes, a invenção visual, o desenvolvimento de tramas que vão além de “molas” para a próxima correria frenética, ou o próximo festival de explosões, o que Bay conseguiu, para além do jingoísmo (e racismo) de Pearl Harbor, e da defesa do militarismo em praticamente toda a sua filmografia, foi além: toda uma saga de filmes onde o que sobressai é a estupidez, o primitivismo e a truculência das tramas, onde a humanidade, representada por Witwicky, é minúscula diante da vulgaridade dos robôs (e de Megan Fox, que, com toda a óbvia beleza, consegue ser o oposto de sexy em Vingança), empenhados em se digladiar e devastar cidades pelos motivos mais toscos – a ação do “bonzinho” Optimus, no final do terceiro filme, é estarrecedora por partir de um suposto herói –, e onde a única coisa em jogo é o desejo de dominação. Quando a poeira baixar, Transformers, infelizmente, deve ser lembrada como a pior saga do cinema – e Bay, como um dos diretores mais destrutivos do cinema americano.

Reconhecimento além do box-office: de Sem Dor, Sem Ganho até 13 Horas (2013-2016)

Incrivelmente, a maré de críticas negativas parece ter afetado Bay. Sua filmografia, desde então – e espera-se que o próximo Transformers não reverta isso – coloca em dúvida alguns elementos centrais dos seus sucessos anteriores. Tal como Jerry Bruckheimer, igualmente vilanizado com um vulgarizador do cinema americano, e que buscou a redenção ao produzir algumas das séries mais aclamadas da TV americana recente, Michael Bay também tem contas a acertar com sua obra pregressa, e seus últimos filmes são a expressão disso.

Sem Dor, Sem Ganho (2013) divide com A Rocha a distinção de ser o melhor produto na filmografia de Bay, com a vantagem de poder ser apreciado por pessoas que não gostam de filmes de ação. Com sua história (em grande parte, real) de ascensão e queda alucinada envolvendo três fisiculturistas, que sequestram e torturam um milionário arrogante (Tony Shalhoub, tendo uma merecida chance no cinema) para transferir seus bens, o filme é a primeira peça na obra de Bay a provocar genuínas inquietação e reflexão. A história de muitos de seus heróis até aqui – gente comum, pessoas sem muito destaque no exército, na polícia, na escola, mas capazes de feitos heroicos, extraordinários – é subvertida na trajetória de Daniel Lugo (Mark Wahlberg, despertando aquele ator que passa a maior parte do tempo com preguiça, ou preocupado com a imagem de galã), um homem que decide ser um “realizador”, ter controle de sua vida. Com uma narrativa atordoante, febril, à maneira de Os Bons Companheiros (1990), de Martin Scorsese, doses perturbadoras de sarcasmo, e atuações inspiradas de todo o elenco – Dwayne Johnson, em especial, está brilhante, algo que eu nunca achei que diria dele –, Sem Dor, Sem Ganho é o maior feito artístico de Bay até aqui, o que significa muito num diretor que parece ter alergia ao adjetivo.

Transformers: A Era da Extinção (2014) e 13 Horas: Os Soldados Secretos de Benghazi, lançado esse ano, parecem recair nos velhos clichês de Bay, mas mesmo neles vemos o diretor desafiando suas velhas convicções. No caso da saga de Optimus Prime, a atenção do diretor aos personagens humanos, em especial à relação de Cade Yeager (Wahlberg) e sua filha Tessa (Nicola Peltz), resgata um pouco da humanidade do primeiro filme, e, mesmo toscas, suas tentativas de inserir um debate sobre ética na ciência mostram uma consciência “humana” que vinha faltando a toda a série até aqui. 13 Horas, por sua vez, volta a glorificar os feitos militares dos EUA, e o zelo e sacrifício de seus bravos soldados, ao narrar o episódio (mais uma vez, real) de defesa de uma base da CIA na Líbia por um contingente mínimo de guerreiros de elite – mas o faz por uma via de desencanto, de crítica à burocracia das cúpulas militares, de ceticismo quanto às intenções americanas no Oriente Médio. Não chega a ser um confronto das ações americanas naquele país – ou, afinal, não seria Michael Bay – mas é surpreendente para um diretor que construiu sua carreira livre de reflexões morais.

Com tudo isso, a personalidade forte do diretor impressa em cada filme – sim, ele pode perfeitamente ser considerado um auteur, no sentido atribuído ao termo pela Cahiers du Cinema, o diretor reconhecível à visão de uma simples sequência –, as intenções sempre claras, na superfície, o homem continua um mistério. Michael Bay já demonstrou ter talento, inteligência e sagacidade, até a respeito da má fama que construiu para si mesmo, mas, diferentemente de Bruckheimer, ele continua indeciso sobre querer ser levado a sério e abraçar o tipo de cinema que o tornou rico e famoso. Bay, como vimos em Sem Dor, Sem Ganho, é capaz de fazer ótimos filmes, mas parece acreditar sinceramente no mérito de suas obras sobre os robôs gigantes. Eis, aqui, onde ele e Donald Trump divergem – o candidato republicano é apenas tosco, grosseiro e racista, apesar do sucesso empresarial, enquanto Bay poderia transcender tudo isso, se quisesse. O grande enigma é se, em seus próximos filmes, ele vai dar esse salto – ou se vai continuar a ser encarnação cinematográfica do Tea Party.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.