A Índia é o país mais violento para mulheres, segundo uma pesquisa da Fundação Thomson Reuters. Do outro lado do planeta, o Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registrou uma média diária de 606 casos de violência doméstica e 164 de estupro. Deixa-se claro, no entanto, que tais dados podem ser apenas 10% da realidade, ao considerar a subnotificação dos crimes: o silêncio.

Mulheres, a esmagadora maioria das vítimas deste tipo de violência, são estruturalmente silenciadas, não só em questões de denúncia, mas em situações já normalizadas pela sociedade em geral, de modo que não só das decisões, mas as palavras em si, sejam um árido monopólio masculino. Tal realidade é comum a Brasil, Índia e a muitos outros países.

A antologia poética Outros jeitos de usar a boca (2014), da indiana Rupi Kaur, best-seller do The New York Times por 75 semanas consecutivas, e o curta-metragem brasileiro Estado Itinerante (MG, 2016), de Ana Carolina Soares, se encontram em muitos temas relativos à libertação feminina e, mais especificamente, ao modo como tais narrativas expõem, pela apropriação do direito à palavra, o silêncio do qual nasceram.


O silêncio escrito

deixar a barriga da minha mãe vazia

 foi meu primeiro ato de desaparecimento

 aprender a encolher para uma família

 que gosta de ver as filhas invisíveis

 foi o segundo

 a arte de se esvaziar

 é simples

 acredite quando eles dizem

 que você não é nada

Publicado em 2014, Outros jeitos de usar a boca ficou entre os best-sellers do The New York Times por 75 semanas consecutivas. Suas obras, tanto poema quanto prosa, são sempre escritas com letras minúsculas e usando somente pontos finais como pontuação, o que, segundo Kaur, remonta à influência das escrituras sikth, uma parte de suas raízes indianas, no seu trabalho. Além de poesia e prosa, Rupi Kaur também é ilustradora.

O título original, que traduzido para português seria “leite e mel”, além de serem citados em várias religiões, eram usados como ingredientes curativos pelo seu povo, além de ser uma referência às mulheres sobreviventes do genocídio sikh, na Índia. O título da versão brasileira, que pode parecer erótico à primeira vista, está mais ligado ao direito à palavra do que ao erotismo, embora por ele também passe, carregando consigo a consciência da própria voz e da própria sexualidade.

O livro é dividido em quatro partes: a dor, o amor, a ruptura e a cura. Os temas abordados focam na experiência feminina de abuso, os relacionamentos e a busca pela própria libertação. Tal divisão traça uma linha cronológica – ou, pelo menos, uma sequência lógica – de situações vividas pela autora. Na primeira parte, a dor, abusos e traumas sofridos são o principal tema, indo desde o primeiro beijo até sessões de terapia onde deveria mostrar, em uma boneca, a parte do corpo havia sido molestada.

A segunda parte, o amor, concentra poesias românticas e eróticas. Provavelmente todas as poesias deste capítulo – o mais bonito do livro, na minha opinião – sejam sobre o mesmo relacionamento. Apesar da beleza do segundo capítulo, é seguido por a ruptura, no qual os poemas assumem um tom sombrio, inseguro e melancólico.

Apesar de ambos serem tristes, a ruptura difere do primeiro capítulo: enquanto o primeiro capítulo parece assumir um tom confessional cru, com nuances de traumas relativamente superados; o terceiro, ao contrário, parece estar em carne viva, com focos de raiva.

Por último, a cura. Nele, os poemas assumem definitivamente o tom de aconselhamento sobre autoconsciência e sororidade. Apesar de, ao longo do livro, tal tom se manifestar em alguns poemas, é apenas na última parte que o aconselhamento se torna um tema central, ao entender o contato com outras mulheres como um elemento emocionalmente curativo.

O silêncio filmado

aceite que você merece mais

do que amor doloroso

a vida nos move

a decisão mais justa

com o seu coração

é se mover junto

Estado Itinerante (2016) é um curta brasileiro dirigido por Ana Carolina Soares. O filme conta a história de Viviana, uma cobradora de ônibus recém-chegada a uma nova empresa que tenta fugir de um relacionamento violento, buscando refúgio em diferentes lugares todas as noites. Trabalhando em um ambiente também dominado por homens, Viviana encontra apoio nas demais mulheres da empresa.

Assim como no livro de Rupi Kaur, a história de Vivi parece percorrer os mesmos estágios de dor, amor, ruptura e cura, ainda que, talvez, não na mesma ordem. A delicadeza da narrativa se foca na relação de crescente empatia entre a protagonista e as demais personagens femininas, que se vêem e se entendem como cúmplices de uma opressão dominante.

Reforçando o protagonismo das mulheres no filme, mas sem deixar de mostrar que, mesmo protagonistas, ainda sofrem opressão por aqueles que se julgam donos da palavra e do pensamento. Os homens falam, gritam, brigam, batem, mas seus rostos nunca são mostrados. Em uma narrativa predominantemente silenciosa, vozes femininas estão acostumadas a se retrair diante do monopólio masculino do som. E escondem hematomas com mangas compridas.


Do silêncio à palavra

você tinha tanto medo

da minha voz

que eu decidi

ter medo também

Em nenhuma das duas obras somos exatamente apresentadas aos personagens masculinos, e, ainda sim, a opressão do silenciamento feita por eles ressoa pelas duas narrativas.

Assim como Rupi Kaur incorpora falas de seu pai e de seu ex-companheiro aos seus poemas para poder, de certa forma, responder-lhes à altura, as protagonistas de Estado Itinerante estão sempre cercadas por sons masculinos agressivos: como os motoqueiros atrapalhando propositalmente uma cantoria feminina.

Os mesmos temas que dividem o livro de Kaur acabam por – não necessariamente na mesma ordem – guiar também a trama de Viviana, que hesita em sair de um ambiente violento porque, como representado no filme, o som mais alto e a última palavra a ser considerada vêm dos personagens masculinos. E a isso representa a dor comum.

O amor, apesar de não ser apresentado no filme, certamente fez parte da narrativa de Viviana no passado, ou mesmo no presente, quando se mistura o medo e a esperança de que melhores dias viriam, o estado itinerante por si. E, aqui, ruptura e cura não são partes separadas, e sim as partes constituintes da história de Viviana.

As duas obras também conversam entre si no que diz respeito ao que trouxe suas protagonistas de volta à vida, se assim se possa dizer: sua relação de apoio com outras mulheres. Se Rupi Kaur, por meio de seus poemas, aconselha e compartilha seus sofrimentos para que não tomem conta de si; Viviana, em silêncio, é aconselhada por suas amigas.

A sequência final do filme, com Viviana finalmente abandonando a casa onde morou com seu agressor, enquanto é seguida despretensiosamente por um carro com altos-falantes tocando uma música de teor sexual e misógino, mostra que a fuga da opressão sonora pode ser definitiva no âmbito pessoal, mas ainda não no espaço público.

O direito à palavra e ao som é descoberta comum. Outros jeitos de usar a boca e Estado Itinerante são narrativas sobre o silêncio, mas não de um silêncio presente, e sim de um passado silencioso. E silenciado.