O coreano Hong Sang-soo é um diretor como poucos quando o assunto é imergir o espectador numa determinada atmosfera e fazer disso o foco de seus filmes tanto quanto a narrativa em si. Enquanto que para alguns realizadores, como Wes Anderson ou Nicolas Winding Refn, isso se traduz numa exuberância dos aspectos visuais dos longas, com o sul-coreano a história é diferente: o minimalismo na atuação, a simplicidade da composição e a quase-inexistência de ação no roteiro são sua marca. E com “Na praia à noite sozinha” (Bamui haebyun-eoseo honja, 2017) , ele nos coloca novamente nesse clima.

Hong Sang-soo parte de um fio de trama bastante irrisório, como de praxe. Temos a atriz Young-hee (Min-hee Kim, de “A criada“), que se encontra numa espécie de autoexílio na Alemanha após os burburinhos sobre ela ter tido um caso com um diretor de cinema casado na Coreia. Ela tenta se distanciar do assunto, ao passo que anseia que ele a reencontre ali – afinal, os boatos eram verdade e ela está longe de superar o affair. A ânsia de Young-hee se expressa nos mínimos detalhes, desde uma conversa à necessidade de estar sempre em movimento pela cidade, acompanhada da amiga e anfitriã Jee-young (Seo Young-hwa).

O MÍNIMO MÁXIMO

O exercício contemplativo sobre a necessidade de amor em “Na praia à noite sozinha” é envolvido por códigos caros ao seu diretor: temos os longos takes, o zoom que, embora tão simples, sempre sucede em gerar impacto pelo que destaca na imagem em termos simbólicos, os diálogos fluidos entrecortados por silêncios que falam tanto quanto eles, e a fotografia delicada, de tons desbotados, de Park Hongyeol e Hyung-ku Kim (este último, parceiro costumeiro de Hong Sang-soo desde meados dos anos 2000).

Esse conjunto casa de forma orgânica com o equilíbrio que o longa tem entre a representação ultra naturalista e os momentos mais oníricos do roteiro. Vemos isso ao final do primeiro segmento do longa, assim como naquele em que Young-hee está na praia – os quais não entraremos em detalhe para não estraga-los para quem ainda não viu o filme. É uma abordagem intrigante se levarmos em consideração como essa dubiedade entre o que é real e o que é sonho ou fantasia é, muitas vezes, retratada com cores bem menos sutis, tal como tanto vimos na filmografia de Federico Fellini, para citar só um realizador. Com Hong Sang-soo, a estrutura fílmica flerta com a teatral e a literária, mas em “Na praia à noite sozinha” ele nos instiga ao lembrar  que, às vezes, as ânsias e sonhos se revestem de uma sensação de real muito forte, e precisam de muito pouco para transparecer esse real.

A atenção ao mínimo típica do coreano contrasta com as várias camadas de texto que “Na praia à noite sozinha” coloca como possibilidade ao espectador. Ao contextualizarmos a obra para além da narrativa fílmica em si, ela teria tudo para ser apelativa: afinal, a trama muito lembra o caso envolvendo o próprio diretor e a atriz protagonista, que assumiram um romance depois do escândalo do affair extraconjugal, com direito à esposa de  Hong Sang-soo dando entrevista para programas televisivos sobre o assunto. Passando à margem disso tudo, o filme foca na perspectiva de apenas uma das partes envolvidas no quiproquó, e a atuação de Min-hee Kim dá as nuances necessárias para que o filme não seja uma carta de justificativas para a tradicional sociedade coreana e vá muito além.

“Na praia à noite sozinha” foge de grandes polêmicas em seu formato, mas suas entrelinhas respiram através delas. Temos momentos em que a aparente placidez de Young-hee deixa escapar sua ânsia, principalmente na primeira parte do filme, dividido em dois blocos, com direito a novos créditos e fotografia levemente diferenciada. Temos também detalhes em falas dos demais personagens, com alguns eventualmente pontuando sobre como o amor não é algo controlável a ponto de ser possível de todo impedir os sentimentos de Young-hee e o diretor. Em outra sequência, vemos Young-hee ser questionada por um amigo sobre como ela adquirira um ar mais maduro em seu semblante após a experiência, ainda que a contenção das emoções seja uma marca cultural forte a eles.

Talvez o mais emblemático detalhe é, no entanto, o encontro de Young-hee com um compositor. Ao descrever suas músicas, detalhadas num livro de partituras, ele explica à mulher que as obras parecem muito simples, mas que um olhar atento revela que as estruturas das músicas são mais complexas do que aparentam. Essa é uma metáfora excelente para descrever a situação da atriz na trama e do filme como um todo, no uso de linguagem que Hong Sang-soo propõe.

A PAIXÃO DE MIN-HEE KIM

Grande parte do poder que “Na praia à noite sozinha” exerce está na interpretação de Min-hee Kim. A atriz, que chamou atenção principalmente como uma das protagonistas de “A Criada” (Ah-ga-ssi, Park Chan-Wook, 2016), ganhou um Urso de Prata no Festival de Berlim pelo trabalho com Hong Sang-soo. Vendo o filme, é fácil entender o motivo: com tão pouco, numa atuação introspectiva quase que na totalidade de seu tempo em tela, Min-hee Kim exprime uma gama rica de sensações, da saudade à necessidade da arte como escape e fortalecimento pessoal.

Quando sua aparente suavidade dá espaço para reações mais passionais, como na cena em que, bêbada, ela discute com amigos, ou no jantar com a equipe de produção de um filme, em que ela confronta de cara tudo aquilo que tenta suprimir, a atriz consegue manter a consistência dessa atuação, gerando grande empatia para com o personagem. Isso é especialmente interessante, pois ainda que, em termos de gênero, seja hoje tão batido colocar uma mulher para atuar sofrendo por um homem, com a trama revolvendo em torno disso, Min-hee Kim tem no longa um papel plurifacetado e, principalmente, repleto de humanidade.

Ainda que seja mais simples que o ousado e ótimo “Certo agora, errado antes” (Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da, 2015), “Na praia à noite sozinha” figura como ponto obrigatório da filmografia de seu diretor. O ritmo lento, porém fluido, não chega a ser impeditivo para os não afeitos a esse conjunto de obra, e a temática e estrutura mais próxima do tradicional ajuda a colocar esse filme como uma boa porta de entrada para os que ainda não conhecem o trabalho de um dos diretores mais populares do cinema coreano.