Um dos mais importantes filmes de Marguerite Duras é o escolhido de hoje para O Segundo Sexo, seção especial do Cine Set dedicada a grandes obras de diretoras mulheres.

O filme “Nathalie Granger” (1972) foi dirigido por Marguerite Duras. Ela é a escritora por trás do já clássico livro “O Amante”, que foi adaptado para o cinema por Jean-Jacques Annaud em 1992, além de ter escrito uma série de roteiro para televisão e cinema, mais notadamente para o belíssimo “Hiroshima, Meu Amor” (1959), de Alain Resnais. Aliás, no cinema, Duras foi expoente da turma da Rive Gauche, grupo paralelo àquele formado inicialmente por Godard, Truffaut e cia., mas ainda relacionado à geração da Nouvelle Vague.

Caracterizada basicamente por uma relação maior com o experimentalismo artístico e o forte laço com a literatura, a Rive Gauche tem em “Nathalie Granger” um curioso filme que merece ser revisitado. Este, o quarto longa-metragem de Duras, sumariza bem a proposta da artista enquanto diretora ao construir uma atmosfera opressora, típica de suas obras nas mais variadas mídias, com uma roupagem arrojada até mesmo para os dias de hoje. Poucos filmes transpiram literatura de maneira tão intensa como os de Duras.

Calcado na tensão de diálogos e ações que quase nunca se concretizam ou criam unidade, “Nathalie Granger” acompanha a mãe da personagem-título, interpretada por Lucia Bosè. Junto a outra mulher cujo laço com a família nunca é identificado (interpretada por Jeanne Moreau), elas ponderam o destino da menina Nathalie, que foi expulsa da escola por conta de uma atitude muito violenta que nunca é mostrada ou descrita em detalhes. Nesse meio tempo, as duas mulheres acompanham as notícias sobre uma dupla de jovens da região que teria cometido um assassinato.

Um incômodo constante compõe a atmosfera da casa, emoldurado pelas perguntas que não se respondem: o que Nathalie teria feito? Qual a relação da família com os rapazes assassinos? Por que a relação entre mãe e filha é tão distante? O clima pesado do ambiente familiar é muito bem retratado através da fotografia rígida em preto e branco de alto contraste, juntamente com o contraponto entre o exterior, que surge como um jardim devidamente murado ou na imagem da rua, a qual vemos a partir de uma brecha, e o interior da casa, explorado o máximo possível em planos fixos e sufocantes, que dão a impressão dos atores estarem, de fato, tão presos na mise-en-scène como seu respectivos personagens estão presos naquela condição.

Um ponto curioso em “Nathalie Granger” é a aparição do então novato Gérard Depardieu como um atrapalhado vendedor. O personagem parece surgir como um alívio cômico, só para depois ser engolido pela tensão que envolve o (nada doce) lar da família. Novamente, o foco em suas cenas é o desconforto, a sensação de se estar preso a uma situação da qual não se pode sair com facilidade. Tal sensação provém da força impressa pelo duo Bosè-Moreau, que, fazendo tão pouco, são essenciais em seus movimentos e expressões econômicos para expressar aquilo que Duras sugere ao longo do filme.

Impressiona aos fãs da Duras escritora como ela consegue imprimir sua força e personalidade em nível de visualidade, uma vez que a Duras diretora opta pela quase ausência de diálogo. Nesse sentido, pode-se traçar um paralelo entre “Nathalie Granger” e “A Fita Branca” (2009), do diretor austríaco Michael Haneke; o que se deixa de fora, para a imaginação, é mais assustador que aquilo que está gritante no espaço da ação, e ela tem completo domínio de como ofertar ao espectador a relação de cumplicidade que um filme desse tipo pede.

Nesse sentido, não se pode deixar de relacionar novamente um recurso tipicamente literário ao filme: a elipse, ou seja, o subentendido. Pode-se resumir todo o plot de “Nathalie Granger” a essa expressão, uma vez que são inúmeros os pontos sem explicação, preenchidos unicamente pelo sentimento ruim que o tédio e a apreensão do dia a dia da família passam ao espectador, tornando a fruição do filme, verdade seja dita, algo próximo do insuportável, o que parece mesmo ser a proposta de Duras aqui. É como se ela quisesse que, no fundo, todo o potencial maligno da menina Nathalie fosse, no fim das contas, a epítome do mal que temos dentro de nós mesmos, a partir do qual podemos preencher as lacunas que ela nos instiga a olhar para. Tudo isso expresso de maneira o menos didática possível.

Outro ponto que intriga o espectador e ajuda a deixá-lo desconfortável é a representação de cada personagem feminina como um ser subvertido. A mãe interpretada por Bosè pouco tem de maternal; a companheira vivida por Moreau nunca permite que concluamos qual a sua função na vida da protagonista, sendo uma figura igualmente ausente do campo afetivo de Nathalie; a menina em si é um mistério, quase sempre uma ausência cujas pistas ecoam pela casa. Será uma vítima naquele lar frio e impessoal? Ou ela seria a causa do problema que parece rondar a casa, seguindo a tradição de “crianças amaldiçoadas” que o cinema apresenta ao público de tempos em tempos? A resposta, nós nunca sabemos.

Com essa profundidade assustadora, era de se esperar que “Nathalie Granger” trouxesse uma complexidade ímpar em termos de possibilidades do uso da linguagem fílmica. Afinal de contas, se a obra não se insere de todo nos maneirismos da montagem transgressora da Nouvelle Vague, ela conta ainda com o contexto da Rive Gauche, que também era afeita a um cinema experimental. No entanto, o filme carrega em si um roteiro relativamente simples, assim como um uso econômico de todos os recursos possíveis, em especial, o corte, além de ter sido filmado num espaço que Duras conhecia como ninguém: sua própria casa na época. Os planos, longos, fazem muitas das cenas beirarem o teatral, para logo depois tornarem-se mais longas ainda e deixarem o tempo diegético equivalente ao tempo do expectador.

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Dito tudo isso, há filmes que desafiam o espectador médio, acostumado a narrativas convencionais e que, vencida uma barreira inicial em relação ao formato mais arrojado, acaba assistindo a um filme com potencial para lhe agradar. Esse não é o caso de “Nathalie Granger”; sem dúvida, ele divide opiniões e é capaz de colocá-las em extremos opostos, do amor ao ódio, exigindo um espectador especializado e com os ânimos muito bem ajustados para a experiência de ver esse filme. Que você assista por sua conta e risco.