As luzes se apagam, o letreiro anuncia o título do filme: “Ninfomaníaca – parte 1”. Os segundos que se seguem com a tela completamente negra deixam o espectador na dúvida se é apenas um fade out gigantesco, um problema na projeção ou se o cinema pregou uma grande peça nos espectadores, e que, na verdade, não há filme nenhum. Em Manaus, nunca se sabe! Mas não, está tudo certo. São 22h25 da noite, a neve cai sobre Charlotte Gainsbourg e a saga de uma mulher muito complicada (e de um público que bateu o pé exigindo algo de diferente para assistir no cinema) tem início.

Como o título sugere sem sutileza, “Ninfomaníaca” conta a história de uma mulher que sofre de compulsão sexual, Joe (Charlotte Gainsbourg, em sua terceira parceria com o diretor dinamarquês Lars Von Trier nos cinemas). Inconsciente e machucada, ela é encontrada na rua por Seligman (Stellan Skarsgård), que, preocupado com seu estado deplorável, leva-a para casa. Joe então conta a ele como o transtorno afetou sua vida desde a infância.

Von Trier sabe como criar polêmica. Apesar de ter evitado o contato direto com a imprensa para promover o filme, sua tática de liberar imagens e teasers eventuais e dar corda a boatos relativos a quão reais seriam as cenas de sexo foi o suficiente para chamar a atenção. Porém, aos fãs do diretor e cinéfilos em geral isso era só um detalhe; depois de “Anticristo” e “Melancolia”, obras impactantes tanto em temática como em concepção, a curiosidade para ver quais inovações Von Trier mostraria em “Ninfomaníaca” era grande. Nesse ponto, o filme não chega a ser decepcionante, mas está claramente aquém de seus predecessores.

Percebe-se bem que a montagem se tornou um problema para “Ninfomaníaca – parte 1” logo nos primeiros minutos de projeção. O filme tem uma estrutura calcada basicamente em flashbacks e numa espécie de hipertextualidade cinematográfica, criando movimentos que não apenas vão e voltam no tempo como também navegam criando ligações entre assuntos aparentemente diversos como sexo, pescaria ou música clássica.

Tudo isso fica comprometido com a exigência de que “Ninfomaníaca”, que fora idealizado para ter mais de cinco horas de duração, virasse dois filmes de mais ou menos duas horas. O fluir da narrativa é cambaleante, os hiperlinks por vezes se mostram quebrados ou sem impacto, e a aparente tentativa de dar ao filme um ritmo como que literário é frustrada.

Quem se prejudica mais com isso é Seligman, personagem emblemático a quem foi dada a tarefa de alimentar as conexões. Apesar de ser convincente a sua curiosidade e neutralidade em relação a Joe, certas aproximações que ele apresenta são por demais forçadas (vide a primeira referência feita à sequência de Fibonacci), assim como algumas emendas que ele faz para unir os capítulos da vida de Joe. Falando em capítulos, a falta de uniformidade entre eles cria desníveis que ora arrastam o filme, como na sequência da morte do pai de Joe, ora criam momentos de grande beleza, como a integração na tela de três momentos diferentes no capítulo 5, “The little organ school”.

A gritante “picotada” da montagem é provavelmente o maior problema de “Ninfomaníaca – parte 1”, mas não é o único. Outro ponto importante é a questão do processo tão tradicional de se criar empatia entre público e personagem principal. Joe sofre por sua condição, mas por não ser retratada nem como vítima e nem como uma pessoa cativante, a necessidade do espectador de criar um laço emocional com a protagonista para se conectar à trama é uma tarefa difícil. Como Stacy Martin não é nenhum ás da atuação, cabe a Gainsbourg, na posição apenas de narradora, carregar a cruz de uma personagem na qual o espectador nunca mergulha de fato (pelo menos não nessa parte 1).

Complica ainda mais a decisão de Von Trier de não apresentar uma provável causa para o transtorno de Joe, o que poderia ter sido uma boa chance de aproveitar melhor a participação de Christian Slater e Connie Nielsen como os pais da jovem Joe. Em um futuro não tão distante, veremos se o diretor sanou esses problemas em “Ninfomaníaca – parte 2” ou se chutou o balde para desenvolver a personagem de maneira mais completa.

Ironicamente, pouco chamam a atenção as cenas de sexo em “Ninfomaníaca –parte 1”, o que se revela um ponto positivo. Uma vez que o termo que dá título ao filme se refere a um transtorno psicológico, não faria sentido retrata-lo como algo “excitante”, “sexy” e “legal” para o público. Dito isso, as cenas de sexo mostram muito mais o descompasso do comportamento patológico de Joe que o prazer em si. Ao encaixar “Ninfomaníaca – parte 1” no contexto da Trilogia da Depressão de Von Trier, formada pelos já citados “Anticristo” e “Melancolia”, fica ainda mais claro que o sexo não está ali para diversão e deleite de espectadores com um mínimo de saúde mental.

Quanto à exposição do corpo dos atores envolvidos nas cenas de sexo, ponto que já gerou bastante curiosidade na grande mídia, esta é até discreta se comparada ao que o diretor nos fez acreditar que seria; há bastante nudez frontal masculina e feminina, mas nada fora de contexto ou explícito no nível do cinema pornô. Cenas bem mais reveladoras já foram vistas esse ano mesmo em “Um estranho no lago”, para dar apenas um exemplo.

Outro ponto positivo do filme é o elenco, com destaque para Shia LaBeouf como Jerôme e Uma Thurman como a Sra. H. em atuações memoráveis. O primeiro consegue agregar perfeitamente toda a linguagem corporal, os trejeitos, o modo de falar, enfim, todos os detalhes daquele tipo de homem medíocre, inseguro e, ao mesmo tempo e por alguma razão inexplicável, irresistível. Já Uma mostra que pode atuar de verdade se bem dirigida, representando uma mulher abandonada pelo marido que não pestaneja em torturar psicologicamente a si mesma e aos filhos pequenos para deixa-lo morto de culpa. A sequência em que o fato ocorre e na qual ela brilha, aliás, é o momento mais absurdo e cômico do filme!

De maneira geral, “Ninfomaníaca – parte 1” tem tudo para ser incompreendido, e em boa parte a culpa é do próprio diretor. Sua proposta de criar um filme permeado de links é interessante, mas a montagem, essencial para esse processo, distorceu o processo. Além disso, o corte do filme em dois, na melhor das hipóteses, prejudicou a compreensão da personagem principal por parte do público, pois não chegamos a entendê-la em profundidade ao longo de duas horas (será que com mais duas isso será possível, ou será que o roteiro realmente descuidou de Joe?).

No entanto, até mesmo um filme mediano de Lars Von Trier é algo interessante para se experimentar. Levando em consideração o contexto de Manaus, uma cidade em que é praticamente impossível ver um filme não tão comercial no cinema, é ainda mais louvável a chance de assistir a um filme menos “quadrado”. Sobre isso, impossível não citar também a maturidade do público na sessão lotada.

Durante toda a projeção, o silêncio imperou. Os risos surgiram nas cenas absurdas como a da Sra. H., assim como as interjeições escapavam em momentos mais chocantes. Porém, salvo raras exceções, não se ouviam imaturas risadinhas ao surgirem genitais na tela, nem reclamações em voz alta sobre o fato do filme não seguir o “ritmo hollywoodiano”, por exemplo. Isso prova que a cidade tem um público civilizado e significativo para gastar seu rico dinheirinho no cinema, e que não há mais motivos para se marginalizar essa fatia do mercado. A isso, só temos a agradecer ao não-tão-bom-como-queríamos “Ninfomaníaca – parte 1”.

NOTA: 8,0