Dos vários tipos de filme que nós do Cine Set assistimos para que você não tenha que fazê-lo, a cinebiografia inofensiva é uma das mais cruéis. São os filmes “apenas ok” por definição, cujo lado técnico parece funcionar de maneira efetiva e sem frescura, mas cujo conteúdo simplesmente não se destaca, não vai além do óbvio, enfim, não deixa rastros nas “retinas tão fatigadas” do cinéfilo de plantão. Sabendo disso, quem for ao cinema conferir “Nise – O Coração da Loucura” terá o prazer de descobrir que o novo filme de Roberto Berliner NÃO é um desses casos.

Não que você vá saber disso pelo primeiro ato: a despeito de um primeiro plano com Nise da Silveira, conceituada psiquiatra alagoana da década de 1940, lutando para ser ouvida e entrar no manicômio onde boa parte da história se passará (uma cena que diz muito com pouco), o início do filme aponta para um retrato de uma mulher obstinada e humanista numa luta anti-establishment.

Não me leve a mal, é isso sim… mas não exclusivamente. O filme ganha gravitas com a performance de Glória Pires, que serve como nossos olhos nos corredores do manicômio, tocando nas vidas machucadas por traumas de toda a espécie. Como Nise, a atriz tem a oportunidade de tocar uma veia que geralmente passa longe de seus trabalhos em novelas, vivendo uma mulher de personalidade que se vê levando golpes de todos os lados por conta da sua visão da medicina.

De certa forma, o longa faz uma boa sessão dupla com “Flores Raras”, de Bruno Barreto, outro filme em que Glória encarna uma figura histórica que estava disposta a quebrar os paradigmas de sua época e cuja vida é olhada através de um prisma específico. No caso de “Flores”, é o relacionamento entre sua personagem e a poetisa americana Elizabeth Bishop. No caso de “Nise”, é o projeto de terapia ocupacional desenvolvido pela psiquiatra no então Hospital do Engenho de Dentro – tão importante que hoje o local foi rebatizado com o seu nome.

O filme acerta em cheio ao evitar uma narrativa que compreenda a vida de Nise da infância à velhice, permitindo que seu entendimento da psiquiatria, suas filosofias pessoais e mesmo suas orientações políticas apareçam, de maneira natural, em seu trabalho no Engenho de Dentro.

nise gloria piresÉ através da relação com seus “clientes”, como ela os chama, e do poder da arte desenvolvida por eles, que o roteiro tem chance de se livrar de sua introdução estilo piloto automático, com direito a uma atuação com uma teatralidade risível, e nos cativar. No elenco de apoio, Claudio Jaborandy, Julio Adrião, Fabrício Boliveira, Flavio Bauraqui, Roney Villela e Simone Mazzer compõem personagens que envolvem e emocionam.

Ajudando nessa composição, está o ritmo e estilo ditados pela direção de Berliner, que tem larga experiência com documentários, e pela fotografia de André Horta. Ambos povoam “Nise” com longas e surpreendentes tomadas e trabalham com afinco para unir imagem e contexto.

Se no início do longa, quando a psiquiatra encontra os pacientes e o hospital em agonia e desamparo, a câmera se move de um lado para o outro, incessante e nervosa, o desenvolvimento da terapia nos leva a belos planos calmos, como os eventos no terceiro ato. Nele, a própria Nise (a da vida real) aparece em um fragmento de vídeo, bem como algumas das contrapartes reais dos artistas do hospital. Cafona? Sim – mas não menos efetivo. Diagnóstico: “Nise” é mais coração que loucura.