Já se vão 42 anos desde o lançamento de “Taxi Driver” (1976), filme dirigido por Martin Scorsese e que colocou o roteirista (e futuro diretor) Paul Schrader no mapa. Seu cinema sempre foi marcado por protagonistas masculinos (com uma outra exceção, como a cinebiografia da herdeira e guerrilheira Patty Hearst, de 1988) em meio a crises internas e externas. O novo filme dele, “No Coração da Escuridão”, é mais um exemplar desta grife, com uma reflexão profunda sobre religião, meio ambiente e, claro, a solidão masculina que permeia o trabalho de Schrader desde os tempos de Travis Bickle.

O cenário principal de “No Coração da Escuridão” é um quarto onde o seu protagonista (Ethan Hawke) anota seus pensamentos e vivências, que permeiam o filme em uma narração em voice-over aterrorizante. Ele é Ernst Toller, pastor em uma Igreja Reformada de uma cidade de Nova York que passa a escrever em um diário tudo o que o aflige. Nesse meio tempo, um envolvimento com uma jovem frequentadora da igreja acaba abrindo uma espécie de caixa de Pandora com sentimentos que Toller já não se permitia ter, além de descobertas e epifanias assustadoras sobre a fé e a igreja à qual serve e a relação que elas têm com os processos de mudança climática pelos quais o mundo passa.

De longe, dá para pensar em “No Coração da Escuridão” como um primo distante de “mãe!”, filme de Darren Aronofsky que também relacionou religião, criação e o que os seres humanos fazem com o mundo. No entanto, Schrader pega (bem) menos pesado nas metáforas, que existem, mas são trabalhadas de forma mais sutil, principalmente pela fotografia, que não hesita em mostrar Toller como um homem solitário e encurralado.

Um exemplo disso já é visto em uma das primeiras cenas importantes do longa, quando Toller tem uma conversa franca com Michael (Philip Ettinger), marido da jovem Mary (Amanda Seyfried), frequentadora da igreja onde o pastor ministra. Enquanto Michel aparece sob uma luz clara, que mostra a força de suas convicções, o pastor é mostrado sem o sol batendo, com a escuridão deixando sempre a dúvida de sua fé. É interessante notar ainda que, nesta cena, vários elementos cênicos aparecem atrás de Michael, como que a mostrar que há uma grande extensão de seu mundo e do que ele acredita, enquanto atrás de Toller tem apenas uma cortina cinza e uma janela fechada – autoexplicativo, né?

A mesma dualidade se vê na forma com que são retratados o já citado quarto de Toller e a igreja Reformada: o primeiro é claustrofóbico e triste, enquanto a segunda já aparece nos primeiros segundos do longa de forma suntuosa, imponente e ameaçadora, ao mesmo tempo que oferece uma falsa sensação de conforto aos que a frequentam – e isso é decodificado pelo figurino dos personagens sentados naqueles bancos, sempre de cinza, azul escuro, marrom ou preto.

Mas nenhum aspecto técnico do filme, por melhor que seja, se sustentaria não fosse a performance segura de Ethan Hawke. Ator que o público basicamente viu crescer, ele faz de Toller talvez o personagem mais sombrio de sua bem sucedida carreira. Além de personificar os demônios (por falta de palavra melhor) internos que o personagem teima em deixar enterrados: a sombra da morte do filho e o fracasso do casamento. A evolução do pastor e todo o seu, digamos, calvário emocional são retratados de forma brilhante por Hawke, que consegue exprimir dor, culpa e dúvida não apenas cada palavra que fala na narração, mas nos (importantes) momentos silenciosos do longa. Uma indicação ao Oscar seria (ou será?) mais do que justa.

Hawke tem a seu favor o roteiro provocador de Schrader. Em tempos de presidente norte-americano negando mudanças climáticas e uma forte onda de conservadorismo muitas vezes nascida em igrejas mundo afora, um filme como “No Coração da Escuridão” se faz necessário. Para além de uma bela fotografia e uma grande atuação, a película coloca discussões importantes na mesa, ao mesmo tempo em que transforma seu protagonista em um símbolo do que a falta de conexão com o outro pode causar.