Olhando em retrospecto, o Cinema Novo surge como uma vanguarda obrigatória dentro do leque de conhecimentos de um cinéfilo. Porém, em meados dos anos 1960, o sucesso de crítica que esse movimento mais ou menos difuso tinha não necessariamente apontava para o sucesso de público, o que só se intensificou na medida em que o regime ditatorial se tornava mais rígido. Não por acaso, os cinemanovistas voltaram bastante o olhar para representações alegóricas e dramas de resgate histórico, ou, como bem podemos sumarizar a partir da bibliografia de Glauber Rocha, passou-se da “estética da fome” para a “estética do sonho”.

Na medida em que saímos das obras básicas para o entendimento do cinema dessa época no Brasil, voltamos a atenção para realizadores que, embora não tão largamente enaltecidos quanto Glauber, realizaram feitos bastante significativos para a época, que é o caso de Walter Hugo Khouri. Com seu “Noite vazia”, ele apresentou uma obra totalmente a parte de tudo que caracterizou o Cinema Novo, mas que, ainda assim, imprime até hoje um senso de inovação e autoria únicos.

A montagem e a trilha sonora instrumental (belíssima, de Rogério Duprat) aproximam “Noite Vazia” do thriller psicológico em muitos momentos, além de ser visível a influência de diretores como Ingmar Bergman no andamento do filme. Ainda assim, Khouri nada deve em termos de domínio próprio na direção ao contar a história de dois homens abastados em busca de diversão na noite paulistana numa época de grande efervescência política. O que marca o longa, porém, é o senso de alienação da classe A perante as mudanças sociais que se anunciam a partir dos anos 1960.

Ao contrário dos cinemanovistas, a tensão da política é sobreposta quase que totalmente pela tensão psicológica. Nossos protagonistas, o melancólico Nelson (Gabriele Tinti) e o fanfarrão Luisinho (Mário Benvenutti) anseiam, a todo custo, esquecer as imposições de suas rotinas de trabalho, família e decoro devido aos cidadãos “de bem” que são na superfície. Através do manto de seus privilégios (econômicos e de gênero), o dinheiro parece tudo pagar e nada satisfazer: vagam por restaurantes, bares, casas de show, e cada parada soa a eles como conhecidos itens de um cardápio que já perdeu a graça.

A noite, então, tem um duplo papel: aponta não apenas o tempo diegético, mas, ao encobrir São Paulo pela escuridão, desbota o espaço e as possibilidades de construção de um mapa afetivo mental tanto para o espectador quanto para as personagens. O foco ajusta-se, a partir disso, nas vivências internas de cada um deles. Tal como Alfred Hitchcock se utilizou de recursos de artificialidade no plano visual para representar as distorções do interior de seus protagonistas, Khouri se utiliza de um mecanismo similar, que cria choque justamente quando suas distorções se chocam com as representações realistas.

Assim, temos as acompanhantes de luxo que embarcam na noite vazia junto a Nelson e Luisinho, a doce Mara (Norma Bengell) e a amarga Regina (Odete Lara), quase que como faces opostas de uma mesma moeda: uma é inexperiente, a outra conhece muito bem os percalços da profissão; uma sonha e se apaixona, a outra desconfia de tudo e planeja cada passo.

A diferença entre elas beira o caricato, mas tal sensação sempre é quebrada pelo domínio de Khouri em trazer à tona, para além de cenas tão realistas como a que Regina e Luisinho negociam o valor do programa, os medos e desejos mais ocultos de cada personagem. É isso que impede de tornar as duas mulheres apenas uma espécie de vulto mágico da noite, fantasmas que simplesmente compõem o sonho (ou pesadelo?) dos dois homens.

Esses contrastes, aliás, são padrões repetidos em várias instâncias do filme. A loira/gélida Regina e a morena/gentil Mara, o existencialista Nelson e o sensualista Luisinho, a escuridão dos espaços externos na cidade e a claridade dos interiores na fotografia de Rudolf Icsey, tudo isso dialoga com a sequência inicial dos créditos, no qual esculturas de rostos são parcialmente vistas, com a outra metade das faces sendo encobertas em sombras.

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O nu e o lucro

Como era de se esperar, a sexualidade é um elemento forte em “Noite vazia”. Mas, novamente, o diretor a utiliza de maneira fora das expectativas. O sexo é uma mercadoria, e como tal, é alvo de negociação e mediado diretamente pelo dinheiro, embora o simbolismo do lucro na transação possa ser visto de formas mais implícitas. Vemos isso quando uma bela mulher se aproxima de Nelson e Luisinho num bar, para ser logo dispensada por eles por ser “muito comum”, subentendendo a pergunta que os dois homens podem ter feito a si mesmos: “O que eu ganho com isso (ela)?”. Quando Luisinho tenta, sem sucesso, seduzir a garçonete do restaurante japonês, ele parte para a oferta em dinheiro, numa tentativa de encurtar o caminho a seu objetivo (experimentar a expertise das práticas sexuais da moça, anunciada por um conhecido em comum) de ganhar um algo a mais naquela noite.

Nelson, muito mais consciente das consequências de tamanho vazio existencial, tenta fugir dessa lógica capitalista em suas interações. Ele ensaia alguma empatia, em especial, para com a dócil Mara, mas no fim das contas, é arrastado para um lado e para o outro por Luisinho, sendo também agente da degradação que condena. O dilema do personagem está justamente aí, em ter a consciência, mas nada saber fazer para lutar contra o que seu estado de torpor social proporciona a ele e aos outros. Não por acaso, ele não enfrenta grandes dilemas ao trair sua amante com Mara e Regina, acomodado em seu privilégio masculino e tantos outros.

Podemos muito bem fazer uma leitura na qual Khouri parte de uma fala comumente atribuída ao escritor Oscar Wilde: “Tudo nesse mundo é sobre sexo exceto sexo. Sexo é sobre poder”. Nesse sentido, o diretor explora bem as representações não visuais do sexo, a partir dos diálogos e do que se subentende dele e da montagem de cenas mais “picantes” (entre aspas, pois o são apenas na superfície, já que o contexto na narrativa e mesmo a música de Duprat encobrem as cenas de sexo de um ar de incômodo). Mesmo na cena que traz o prenúncio de um ato sexual lésbico, requisitado por Luisinho, a nudez não é o fator de destaque, e sim, o desconforto de Mara perante a situação.

O corpo feminino nu surge na tela de forma mais explícita justamente numa cena que não tem conotação sexual, quando os personagens tomam um banho de chuva na madrugada, numa sequência que se aproxima, no plano simbólico, de uma tentativa de redenção perante as dores avivadas no decorrer da noite. Curiosamente, pode-se atrelar essa nudez não ao sexo, mas ao religioso, numa espécie de retorno à pureza devastada numa sociedade corrompida.

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A noite do título, no entanto, encaixa-se no ciclo natural que dá lugar ao dia, e tal como esse ciclo de repete incessantemente, o final do filme dá essa noção de inconclusibilidade dos dramas de cada personagem. A redenção, momentânea, dá lugar à volta para casa e para a rotina que os oprime. Os dramas em larga escala, da instabilidade política pré-Golpe de 1964 à corrida armamentista na Guerra Fria, são estranhos aos microdramas do alienado, porém humano, quarteto de Khouri, e aí reside o peso de uma obra que, mesmo na contramão de toda uma importante vanguarda cinematográfica, soube cimentar seu lugar no coração do público e da crítica.