Certos filmes são difíceis de se debruçar, dissecar, embora sejam experiências audiovisuais completas, memoráveis. O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, é um desses trabalhos imunes ao tempo e ao avanço da linguagem. Suas ideias permanecem inventivas, ousadas, instigantes, questionadoras, cínicas, contundentes, visualmente impactantes. E também por conta disso, é tão difícil colocar em palavras lógicas e objetivas o que significa essa experiência tão diferenciada, não apenas na cinematografia brasileira, mas mundial.

Pegando como pano de fundo a história de um criminoso que ganhou enorme repercussão no Brasil dos anos 1960, João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla criou um filme genuinamente brasileiro, com as suas características mais controversas, mas ao mesmo tempo compreendendo as qualidades que nos formam, e com um excelente trabalho de câmera na mão e montagem, realizou um filme que pode soar confuso e experimental, mas que na realidade é um forte comentário crítico sobre a sociedade brasileira da época, e que ainda permanece atual.

É sempre importante ressaltar que este é o primeiro longa do diretor, que tinha apenas 22 anos de idade. O Brasil vivia o Cinema Novo, movimento que tinha como principais referências o Neo-realismo italiano e a Nouvelle Vague, de onde vieram grandes autores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, dentre outros. O Bandido, porém, foi um dos marcos do chamado Cinema Marginal, uma proposta estética mais radical, anarquizada, direta e suja, que subvertia a estética cinematográfica convencional, sem o rebuscamento do Cinema Novo.

O filme tornou-se rapidamente um enorme sucesso de público, pagando-se apenas com a primeira semana em exibição. Sganzerla diversas vezes reclamou que os filmes do Cinema Novo não se conectavam com a audiência, que de nada adiantava a sua qualidade se as pessoas não entendiam o que estava na tela. Comprovou isso com o seu primeiro filme.

Como a ditadura militar estava no poder, o longa de Sganzerla ganha ainda mais força. O filme claramente busca mostrar o Brasil como um lugar corrupto, de poderosos boçais, e de toda uma estrutura social que pune os pobres, e livra os ignorantes e arrogantes criminosos das classes poderosas. É o faroeste do terceiro mundo, como o diretor dizia.

O filme não vai por caminhos narrativos padrão, e não cria personagens complexos, que se transformam. Todos são caricaturas, e refletem como cada papel cumpre uma função na sociedade de terceiro mundo, e que não há como haver nuances enquanto estivermos subjugados por um sistema tão falido. O bandido é charmoso e honrado, o político é populista e corrupto, o jornalista é sensacionalista, o policial é implacável, e a prostituta é mulher de personalidade forte, que não leva desaforo. Através dessas figuras, Sganzerla faz um retrato do que era o Brasil da época, utilizando-se do deboche e de uma apurada consciência política.

No primeiro ato acompanhamos a saga do bandido, e ela logo de cara pode afastar os menos pacientes. As ações do criminoso estão sob uma farsesca mise en scene, a maneira como atira, aborda as vítimas, invade as residências, tudo é uma farsa, elementos de uma comédia criminal, como o diretor a classificou.

A partir de certo ponto do segundo ato, porém, o estilo se torna mais livre, a narrativa parece ser abandonada, acompanhamos a chegada de outros personagens, como o político J.B. da Silva, e da prostituta Janete Jane, e as ações dos personagens vão para lugares mais absurdos, abrindo espaço para a direção nervosa de Sganzerla, com enquadramentos ousados, montagem ágil, o som ora contradizendo, ora ressignificando as imagens, uma estranha narração em off hiperbólica, emulando o estilo sensacionalista dos narradores de programas policiais de rádio da época (e que certamente ainda cabe no sensacionalismo atual do nosso jornalismo), ritmo intenso de imagens desconcertantes, inesperadas, numa invenção audiovisual que ainda não havia sido vista no Brasil, e que poucas vezes foi vista depois.

A trama cresce de maneira tão absurda, que até objetos voadores surgem no céu, e todos vivem a iminência de um ataque extraterrestre, criando um verdadeiro estado de guerra em plena cidade grande. E cabe. Sganzerla criou um universo em que tais situações são plausíveis, e melhor que isso, transformam-se num espetáculo audiovisual grandioso e genial.

Não há no cinema contemporâneo algum exemplar de filme mais criativo e radical que O Bandido da Luz Vermelha. Certamente há exemplares de destaque, mas duvido que o superem. Este filme, feito em 1968, está absolutamente atual e tão desafiador quanto da data de seu lançamento. É um filme absolutamente novo, mesmo com os olhos de 2017.

As atuações acompanham a qualidade do trabalho, e são memoráveis. Paulo Villaça e Helena Ignez fizeram do bandido e da prostituta Janete Jane ícones da cinematografia brasileira, com atuações que transbordam energia e intensidade, além de uma boa dose de cinismo, compreendendo bem todo o deboche criado por Sganzerla, parecendo se divertir muito nos papeis. Ainda assim, a melhor atuação fica para a sensacional composição de Pagano Sobrinho para o ministro, digo, secretário, J.B. da Silva. Abraçando toda a canastronice que parece ser aplicada pelos próprios políticos em seus discursos, Sobrinho cria a figura que representa a boçalidade da classe política, com um tempo de comédia perfeito, elevando o nível do que já era brilhante. Aliás, a primeira aparição de Sobrinho, um jogo de câmeras dentro de um estúdio de TV em que ele discursa olhando direto para a lente, é dos grandes momentos do audiovisual nacional.

O cinema brasileiro, como um todo, precisa ser mais visto e descoberto pelas novas gerações. Trata-se de uma arte inquieta, politizada, de temas relevantes e estética apurada, que desde sempre despertou a atenção do mundo todo, e a constante participação de filmes brasileiros nos principais festivais internacionais comprova isso. E certamente Rogério Sganzerla está no panteão dos gigantes do cinema mundial, com uma obra original, criativa, contundente, e que nada deve a outros mestres mais reconhecidos.