Além da rivalidade no mundo do futebol, Brasil e Argentina guardam semelhanças por um período negro que viveram na sua história: a ditadura. Em terras brasilis, este “fantasma” é observado na atual crise política com insinuações de um possível novo “golpe” na democracia. Independente da validade ou não da frase, a verdade é que esta situação presente, não deixa de trazer resquícios do período militar. Se o brasileiro cada vez mais se vê prostrado diante desta imagem fantasmagórica, o cinema argentino nos últimos anos, a utiliza como ferramenta de estudo – e de fascínio – para compreender os fatores sociais, políticos e econômicos da conjuntura atual do país, e assim, analisar as raízes da violência urbana que cresce no país.

O melancólico A Noite dos Lapís (1986) de Hector Oliveira, o sensível Kamchatka (2002) de Marcelo Pineyro e o poético O Segredo dos Seus Olhos (2008) de Juan José Campanella, são exemplos de ótimos tratamentos que o cinema argentino deu em relação a esta era conturbada. Por isso, era estranho que um dos diretores hermanos mais talentosos surgidos nos últimos anos como Pablo Trapero – tão engajado em filmes que retratam situações e conflitos sociais – ainda não tinha se aventurado neste período histórico. O cineasta já mostrou ter um olhar social apurado como mostrado no drama de mães presidiárias (Leonera, 2008) e na violência dentro das favelas argentinas (Elefante Branco, 2012).

O Clã (2015) é o seu novo filme, a aportar nos cinemas de Manaus na última semana dentro projeto do Cinema de Arte da rede Cinépolis. Referências não faltam a este novo trabalho de Trapero: É a maior bilheteria argentina, batendo Relatos Selvagens (2014) e ganhou o prêmio de direção em 2015 no Festival de Veneza. Também reflete mais uma iniciativa do diretor em explorar um tema de impacto dentro do realismo cru e visceral a qual se especializou em mostrar nos seus trabalhos anteriores, ainda que aqui, prefira trabalhar com uma narrativa mais tradicional.

A história baseada em fatos reais escabrosos na década de 80 de uma família, os Puccio, cujo patriarca Arquimedes (o excelente Guillermo Francella que já tinha brilhado em o Segredo dos Seus Olhos) é um contador e ex-agente do governo militar que apesar do final do regime ditatorial, continua a utilizar informalmente seus conhecimentos de tortura para sequestrar opositores e familiares ricos para exigir resgates. Ele conta com a participação dos filhos, o mais velho Alex (o ótimo Peter Lanzani), astro nacional do rúgbi, passa a questionar as ações do pai. Neste âmbito, o diretor utiliza um relato narrativo que incomoda porque o horror não provém do meio social e sim do seio familiar. Saber que uma aparente família de classe média argentina esconde segredos sórdidos, mexe com nossos temores até em razão que o medo e insegurança estão mais perto da gente do imaginamos.

Arquimedes é um pai de família, um típico patriarca afetuoso, educado e gentil tanto com seus familiares quanto com as pessoas do seu ciclo social. As relações do personagem no âmbito família-social são filmadas através de uma naturalidade e humanidade enorme pela câmera de Trapero. Só que Arquimedes é um lobo na pele de cordeiro. Sua sociopatia aparece na frieza como elabora e executa friamente os planos dos sequestros e define os papéis dos filhos na estratégia. Em o Clã, pode-se dizer que o mais assustador, são os olhares penetrantes (cujos tons azulados de Francella são captados pelas lentes do filme como uma fúria assassina gerada pelos anos da herança sangrenta da ditadura franquista) e o modo calmo de falar de Arquimedes que fortalecem a violência moral e psicológica do que propriamente os atos de violência em si de como o personagem define o destino das suas vítimas. Neste ponto, Trapero mostra que a ditadura não apenas deixou sequelas na história de um país, como intoxicou as relações familiares, os seus laços e suas futuras gerações. As fragilidades emocionais jamais podem ser mensuradas historicamente, apenas sentidas na sua camada mais sensorial através da família Puccio.

Logo, o diretor mostra mais interesse em explorar a dinâmica familiar e psicológica dos seus personagens, do que traçar um olhar investigativo em relação aos crimes praticados pela família – e não há nenhuma subtrama no filme que foque na investigação policial – o que dá um elemento interessante a película de conduzir o choque entre o realismo e a essência macabra da história. É uma pena que O Clã mesmo bonito, envolvente e eficaz visualmente, apresente fragilidades no roteiro em desenvolver sua densidade simbólica que jamais integra satisfatoriamente toda atmosfera emocional dos conflitos dos seus personagens com suas ações. Tanto Arquimedes quanto o seu núcleo familiar jamais adquirem um aprofundamento melhor nas suas motivações, principalmente em sabermos por quais motivos levaram a cometer tais atrocidades. O próprio contexto de integrar os fatos sociais (a ditadura) com elementos familiares carece de uma melhor ligação e organicidade por parte do roteiro, até porque a impressão que temos é que os conflitos dos personagens ficam apenas na zona artificial.

É claro que estes problemas, são compensados pelo trabalho de direção seguro e vigoroso de Pablo Trapero. O seu habitual estilo cru e realista, ganha contornos pops inventivos que deixam a narrativa ágil para trabalhar os diferentes tempos – passado e presente – com recursos visuais elegantes como elipses e planos-sequências. Este último é utilizado de forma eletrizante pelo cineasta, principalmente nas cenas de sequestro, encenadas com certo fascínio, embalando as imagens numa açucarada (e adorável) trilha sonora da época (temos o rock-pop dos Kinks ao Creedence Clearwater Revival) que remete as ações “scorsesianas” de Os Bons Companheiros (1990) – os sequestros são filmados com elegância semelhante a bela sequência na qual o personagem de Ray Liotta leva sua namorada ao restaurante italiano. Em linhas gerais, Trapero transforma situações tensas em momentos de pura adrenalina.

A perícia do diretor também é observada no trabalho de edição feito em parceria com Alejandro Carrilo. Ela demonstra versatilidade quando alinhada aos personagens. Quando se foca em Arquimedes, a montagem é quase estática, com elementos sombrios, o que reflete na sua personalidade. Com Alex, a edição ganha uma montagem dinâmica e imprevisível em razão da insegurança do personagem. O melhor exemplo desta situação no filme é quando numa mesma sequência, acompanhamos Arquimedes assassinando um dos reféns, enquanto distante dali, Alex transa com a namorada. No primeiro momento, a montagem é seca e na segunda impulsiva. Não poderia também deixar de valorizar, o intenso trabalho de Guillermo Francella. Conhecido na argentina como comediante, o ator mostra a mesma versatilidade de Steven Carrel em Foxcatcher, ao interpretar Arquimedes, em uma atuação assustadora e densa por parte do ator. Ele incorpora o personagem como estivesse realmente possuído pela sociopatia. Já Lanzini acerta na composição do filho Alex, dando ao personagem uma uma dualidade humana, alguém perdido entre o respeito e temor pelo próprio pai.

Por fim, O Clã tem seus méritos por mostrar os resquícios da ditadura nas bases de uma família de classe média. É bem dirigido, dinâmico e ousado do ponto de vista técnico. Em contrapartida, apesar das suas boas propostas, o roteiro conveniente e um tanto quanto esquemático demais, não consegue pontuar a mesma densidade narrativa dos outros trabalhos do cineasta. No fundo, o espectador fica com a sensação de que viu um filme satisfatório e empolgante, mas que faltou alguma coisa na narrativa para compreendermos melhor aquela dinâmica família disfuncional.