Em uma noite de quarta-feira, uma sala de cinema no coração de Londres lota de espectadores ansiosos por conferir um novo produto da excelente safra do terror brasileiro. Dirigido por Guto Parente (“Inferninho”), “O Clube dos Canibais” é uma sátira social adulta e sanguinolenta, com comentários fortes sobre o Brasil atual e homenagens ao cinema B, que lhe serve de inspiração temática.

O filme acompanha a vida do casal Otávio e Gilda, membros do The Cannibal Club e têm como hábito comer literalmente seus funcionários. As coisas se complicam quando ela acidentalmente descobre um segredo de Borges (Pedro Domingues), um poderoso congressista e líder do clube. Isso coloca a vida dela e do marido em risco.

“O Clube dos Canibais” vem tendo uma excelente recepção nos festivais internacionais a ponto de Guto ser chamado de “um dos diretores mais interessantes em atividade hoje” pelo programador do Festival de Londres que selecionou o longa para compor o evento.

A produtora Ticiana Augusto Lima, que apresentou “O Clube dos Canibais” à plateia londrina na semana passada, bateu um papo com o Cine Set sobre o projeto, que você confere abaixo:

Cine Set – O filme foi um escrito há alguns anos e finalizado em 2016. Ele sofreu alterações durante esse tempo? O que mudou entre a concepção e a obra completa?

Ticiana Augusto Lima  – A organização do clube e a vida das pessoas que o formavam foram coisas que ganharam corpo durante a produção. Apesar de nos aproximarmos mais da vida da Gilda e do Otávio, o nome do filme é ‘O Clube dos Canibais’, então reforça-se a ideia de que existem outros, como o Clóvis, o Abelardo e o Borges. São pessoas as quais você não chega tão próximo, mas entende que são equivalentes e jogam um jogo parecido.

Cine Set –  O filme, para além dos sustos, trata sobre questões sociais muito pungentes. Considerando que ele chegou a passar por alterações no roteiro durante a produção, quantas dessas questões já estavam presentes no início?

Ticiana – Sempre houve essa ideia de ser um empregado do casal, o qual usa dos seus poderes para subjugá-los, só que depois ela foi crescendo. A gente tentou pontuar isso em outros lugares, como quando aparece a pessoa que serve whisky na sala do deputado, a mulher que pergunta da Gilda se está tudo bem. São pessoas com as quais a gente tenta criar uma tensão remetendo ao fato de que elas são passíveis de serem canibalizadas pelo casal ou pelo grupo. É uma relação de classe.

Cine Set –  Há também uma questão racial, certo? Eu notei que a maioria dessas pessoas seriam consideradas pardas ou negras…

Ticiana –  Sim, pois é como a questão se configura no Brasil. Majoritariamente, as pessoas das classes mais baixas são mais pardas ou negras do que as de classe mais altas e que estão no poder. Claro que há exceções, mas, de um modo geral, é o que vemos no país. Apesar disso, é uma coisa muito mais difícil de você estabelecer como, por exemplo, acontece na sociedade americana, em que isso é mais claro. No Brasil, há um contraste muito grande, mas ele, de alguma forma, se dilui e o elemento racial muitas vezes se perde dentro dessa discussão de classe, mas ambos estão muito arraigados.

Cine Set – A cena do discurso do Borges mexeu muito comigo durante a projeção. Como você acha que ele se alinha com o que está acontecendo na política brasileira?

Ticiana –  Eu acho assustadoramente real. O filme foi rodado em 2016. Começamos a gravar em abril daquele ano, um dia depois que os deputados votaram a favor do impeachment da presidente Dilma [Rousseff], mas o discurso tinha sido escrito meses antes. Eu lembro que o Guto disse que passou mal quando escreveu.

Cine Set – Todo o cenário de instabilidade no Brasil cria uma incerteza no que diz respeito à distribuição de verbas para projetos artísticos. Como você imagina a possibilidade de efetivamente produzir filmes dentro desse contexto?

Ticiana –  Sinceramente, ‘O Clube dos Canibais’ é o nosso primeiro filme com orçamento. Antes disso, a [produtora] Tardo fez quatro longas com pouquíssimo ou nenhum dinheiro. A gente vem de uma escola em que se faz cinema mesmo sem conseguir subsídios. Lógico, a gente vai precisar entender como vamos sobreviver. Se o cinema deixa de ser o nosso trabalho enquanto fonte de renda, vamos ter que trabalhar com outra coisa e o filme vai ter que ser feito em outro modelo de produção. Por experiências prévias, seja conseguindo dinheiro fora ou demorando anos até consegui-lo no Brasil, a gente sobrevive. Acho que isso não é nada que outras gerações não tenham passado. Fazer a gente parar de fazer filmes é algo que eu não acho que eles vão conseguir.

Cine Set – Então existe esperança?

Ticiana –  De continuar fazendo cinema? Com certeza. É só querer.