Podemos dizer que o trabalho antropológico guarda sua proximidade oficial com o cinema nos primeiros registros filmados por Margaret Mead e Gregory Bateson sobre povos chamados primitivos da Indonésia. No entanto, quando Robert Flaherty realiza o documentário Nanook, o Esquimó, em 1922, está contido no filme todo um trabalho que se identifica com a pesquisa etnográfica. Já nesse momento se colocava nitidamente uma discussão sobre o filme documentário, fazendo-se a separação entre o filme típico do registro imagético (algo como o berço do cinejornal) e o filme de narrativa documental como gênero cinematográfico, do qual são representantes John Grierson (e a Escola Britânica), Dziga Vertov e Alberto Cavalcanti. Assim, o filme de Flaherty é considerado o primeiro mais importante filme documentário do cinema. O que gostaria de frisar é que, ao falar do filme etnográfico, temos sempre na lembrança a proposta de um filme documentário.

NanookMas, no cinema antropológico outra divisão se daria na década de 1930: os filmes considerados como “etnografias científicas” e aqueles denominados como “filmes documentários”, do qual Nanook faz parte. Estes filmes foram reconhecidos como pioneiros de uma narrativa fílmica que já era capaz de demarcar suas fronteiras diante do cinema ficcional. No entanto, mais recentemente, quando das mostras nacional e regionais do filme etnográfico, curtas-metragens (como Ribeirinhos do Asfalto [2011], de Jorane Castro) e longas (como As Hiper Mulheres [também de 2011], de Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette) foram exibidos e apresentados à sociedade onde essa fronteira com a ficção parece ter sido rompida: os filmes se colocaram também como obra de ficção.

Neste breve apanhado sobre o cinema etnográfico não temos como deixar de mencionar o nome de Jean Rouch, nas décadas de 1950 e 60, como uma das personalidades que influenciou o filme etnográfico. Rouch tem em sua obra uma estética e uma concepção do registro etnográfico que traz novos horizontes. Além de ser admirador da obra de Flaherty, ele tinha uma predileção pela estética do “Câmera-Olho” de Vertov, justamente porque a desconstrução que o russo utilizou contra o teor da fantasia do cinema ficcional da época acentuava a dimensão autoral. E, junto com Edgar Morin, Rouch realizará Crônica de um Verão (1961) no qual a relação entre cineasta e personagem se manifesta, na perspectiva de contribuir ou não para revelar as particularidades e interioridades do personagem. Rouch acaba por descobrir que um dos propósitos do filme etnográfico é o de revelar o “outro” na imagem-filme.

Teorias e conceitos à parte, o fato é que o cinema etnográfico assumiu diversos formatos e concepções – quase sempre identificados como documentários – e que se apresenta em alta dada a quantidade e qualidade dos filmes que circulam nos inúmeros festivais de cinema, específicos ou não desse “gênero”. Há que se registrar que as cinco edições da Mostra Amazônica do Filme Etnográfico ocorridas em Manaus impulsionaram a produção de filmes com essa natureza e alguns realizadores tiveram seu reconhecimento até em âmbito internacional.

Ermanno StradelliEste enorme preâmbulo é para dizer que, após dois anos, o Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Amazonas reativou seu projeto “NAVI Sempre às Quintas” quando exibe regularmente obras etnocinematográficas vinculadas à Amazônia. Neste mês de março, a “Mostra Cruzando Olhares” apresenta curtas e longas-metragens, no Auditório Rio Negro, do ICHL, às 14 horas, com o intuito de promover a visualização das nuanças amazônicas e com isso elevar o espectador a um estágio de visionário da região. A Mostra, que iniciou no dia 03 com o filme Ermanno Stradelli, o Filho da Cobra Grande (2013), do diretor italiano Andrea Palladino (por longo tempo Andrea morou em Manaus); no dia 10, exibiu os documentários A Civilização Indígena dos Uapés, do salesiano Alcionilio Bruzzi da Silva, e Casimiro (2009), de Fernanda Bizarria e Erlan Souza. Os dois documentários abordam os povos do Rio Negro e a Missão dos Salesianos naquela área. Vale salientar que este último filme foi realizado por dois ex-integrantes do NAVI e foram premiados em mostras nacionais.

As sessões continuam no dia 24 de março com a exibição do longa-metragem de Jorge Bodanzky No Meio do Rio, Entre as Árvores (2009), integrado ao projeto TV Navegar, que “tem como característica dar voz à população local” da Amazônia, e dia 31, com os curtas de Vincent Carelli A Arca dos Zo’é (1993) e Iauaretê, Cachoeira das Onças (2006). Estes últimos filmes constituem obras do projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1987 e liderado por Carelli, tem como objetivo principal a formação de realizadores indígenas no Brasil e a produção de filmes falados nas línguas originais dos povos indígenas.

Aldemar MatiasDada a dica, aproveito o gancho para falar de uma pessoa que, de certa forma, “surgiu” desse momento das Mostras Etnográficas, e hoje desponta como um dos mais importantes documentaristas brasileiros: Aldemar Matias. Aldemar, que começou realizando os curtas A Profecia de Elizon, Parente e Anos de Luz, todos premiados no Amazonas Film Festival, tem agora duas produções circulando em vários festivais e mostras internacionais, arrebatando premiações. Trabalho final no curso que fez na Escuela Internacional de Cine y TV de Cuba, El Enemigo acompanha o trabalho da agente de saúde Mayelín Martinez no combate ao mosquito da dengue naquele país e como funcionam as relações de poder entre governo, profissionais e população.

O filme já ganhou os prêmios de Melhor Documentário no DocumentaMadrid, o prêmio do público no FilmCaravan, na Itália, menção honrosa no Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, o segundo lugar pelo júri no Festival de San Sebastian (e já está na seleção de curtas da edição 2016 do Festival de Cannes, onde fará parte da Short Film Corner) e Melhor Curta-Metragem no Festival de Aguilar, na Espanha, todos em 2015. O outro filme, o curta When I Get Home, conta a história de Tomás e Luís, um casal que depois de 28 anos juntos, num lar montado do jeito deles, parece não mais caber no mesmo quarto. O curta foi realizado também em Havana e foi eleito como uma das melhores produções latino-americanas no Kinoforum – 26º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, em 2015, e agora, em março de 2016, recebeu as estatuetas de Melhor Documentário e Filme do Ano (2015) no Watersprite Film Festival, em Cambridge, Inglaterra.

No cinema de Matias (mas não só dele, na Amazônia) vemos o entrelaçar do “gênero” documentário e a concepção do cinema antropológico numa concretude que não mais permite duvidar da possibilidade do “mergulho no outro” (no dizer de Rouch) sem submetê-lo, subestimá-lo ou menosprezá-lo. É isto a essência do filme etnográfico.